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'Fúria', novo livro de Bob Woodward, traz um jornalista e um presidente de universos diferentes

Livro revela cartas entre Trump e Kim Jong-un e mostra que presidente sabia da gravidade da covid-19 quando ainda a minimizava em público

Por Jennifer Szalai
Atualização:

Neste ponto, em meio ao entusiasmo por livros sobre a Casa Branca de Donald Trump – após o relatório Mueller, um processo de impeachment, e agora a pandemia do coronavírus - que outra revelação sobre o presidente poderia ser realmente uma surpresa? Saber que ele detesta dinheiro e sonha em se aposentar e ter uma vida mais contemplativa, como a de um monge? 

O jornalista investigativo Bob Woodward Foto: Alex Gallardo/Reuters

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Que ele adora ler e conhece toda a obra de Elena Ferrante? Os leitores que adquiriram o novo livro de Bob Woodward, Fúria, empolgados com a promessa de uma “janela vívida para a mente de Trump”, rapidamente vão saber o que os que buscam um apartamento em Nova York com frequência tiveram de aprender: uma janela só pode ser vívida se der para um respiradouro.

Sim, Trump disse explicitamente para Woodward, em março, que em público ele deliberadamente minimizou a importância (ou mais cruamente, mentiu a respeito) do que sabia sobre a pandemia: que o coronavírus, como disse a Woodward um mês antes, “é mais mortal do que qualquer gripe muito forte”, mas preferiu “sempre desdramatizar a doença”. Mas a discrepância entre o que Trump sabia (que o vírus era mortal) e o que ele disse (está tudo bem) já foi noticiado em abril. Em março, Trump não permitiu que passageiros americanos desembarcassem de um navio de cruzeiro “porque quero que os números fiquem onde estão”.

O Trump que emerge em Fúria é impetuoso e gosta de se autopromover – em outras palavras, imediatamente reconhecível para qualquer pessoa que preste uma mínima atenção à sua conduta. Woodward nos lembra em diversos pontos do livro que conduziu diligentemente 17 entrevistas com o presidente. 

“Em um caso, tomei notas feitas à mão e nos outros 16 gravei com permissão dele”, diz o jornalista. As entrevistas foram realizadas num período de sete meses, de dezembro de 2019 a julho de 2020. Depois do seu primeiro livro sobre Trump, Medo, publicado há dois anos, ele continuou a seguir o presidente, com a intenção de “fazer um novo exame e mais profundo da equipe de segurança nacional que ele recrutou e criou nos primeiros meses após sua eleição em 2016”, diz o escritor.

A metade do livro é uma típica narrativa no estilo Woodwardiano de homens muito sérios realizando sobriamente seu trabalho, tentando ao máximo manter o presidente focado e coerente na sua mensagem. Woodward é muito reservado quanto às fontes, dizendo apenas que as conclusões foram extraídas de “centenas de horas de entrevistas com participantes e testemunhas em primeira mão desses eventos”, e quase todos falaram com ele sob a condição de “reserva total” quanto às fontes.

Mas não é difícil adivinhar quem são algumas das principais fontes com base no quão intimamente o livro parece se ajustar às versões preferidas por elas dos fatos. O ex-secretário da Defesa Jim Mattis, tem “uma aparência e atenção estoicas, como um Marine, com sua postura ereta e severa, mas seu sorriso franco, radiante e acolhedor abranda sua aparência". 

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O antigo diretor da Inteligência Nacional Dan Coats “é uma pessoa indulgente exteriormente, mas com uma grande força e coragem por dentro”. (Um sinal de decência irrefutável para Woodward parece ser esta combinação de dureza e brandura). Junto com o ex-secretário de Estado Rex Tillerson (um texano com uma voz suave e riso fácil) Woodward diz que “são todos conservadores ou pessoas apolíticas que quiseram ajudá-lo e ao país”, distinguindo-os no seu epílogo por suas intenções impecáveis. “Homens imperfeitos que responderam ao chamado para o serviço público”.

Até aqui, muito tedioso. Mas então entra Trump na história, que na sua primeira entrevista para Woodward fez insinuações sobre “um novo sistema secreto de armas” e confirmou o que o jornalista qualifica como uma “difícil questão quanto aos Estados Unidos chegarem realmente perto de uma guerra com a Coreia do Norte”. 

Woodward faz muito barulho quanto à obtenção de 25 cartas anteriormente não mencionadas entre Trump e o líder norte-coreano Kim Jong-un, relatando o conteúdo de várias delas nos mínimos detalhes. Mas até ele parece pressionado para explicar sua importância, retratando-as como “declarações de lealdade pessoal que poderiam ter sido feitas pelos cavaleiros da Távola Redonda”. Apesar de tudo isto, a Coreia do Norte continua a desenvolver suas “armas convencionais e nucleares”.

Na maior parte, Trump transformou as 17 entrevistas em oportunidades para seus monólogos, usando o jornalista como plateia e inevitavelmente conduzindo as conversas para seus assuntos favoritos: fake news, James Comey, o relatório de Mueller. Woodward tentou que Trump falasse sobre política e governo, mas não conseguiu convencê-lo. 

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Em abril, quando a pandemia atingia em cheio o país, ele contatou de novo Trump com uma “lista de 14 áreas críticas em que minhas fontes disseram ser necessária uma ação importante”, para conter as mortes em massa; o que foi chocante não foi tanto a recusa de Trump em se envolver com esta lista, como Woodward esperava. “Foi um diálogo de surdos”, lamenta Woodward no livro.

O universo do qual o jornalista provém é onde o establishment da velha escola ainda é venerado e em que Woodward acha que pode fazer a um presidente perguntas intermináveis, idealistas, como “E quanto às suas promessas? O que se passa no seu íntimo?” esperando conseguir um material com mais profundidade para seu livro.

É também um universo onde o jornalista pode repetir livremente a teoria disseminada pelos falcões contrários à China de que “A China tinha um objetivo sinistro” e propositadamente permitiu que o coronavírus se transformasse numa pandemia global. “Se eles arquitetaram isto e deixaram que se propagasse pelo mundo, como o presidente vem assumindo, diz ele. “só posso chegar a uma conclusão: Trump é o homem errado para o cargo”. É uma declaração decepcionante que surpreende no caso do jornalista. 

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Em The Choice, seu livro sobre a campanha presidencial de 1996, ele explicou algo que ainda parecia ser sua crença profunda: “Quando tudo é dito e filtrado, o personagem é o que importa mais”. Mas se as intrigas de palácio documentadas em Fúria e em Medo indicam alguma coisa, é que esta é uma visão infelizmente estreita. E se a real história sobre a era Trump for menos sobre Trump e mais sobre as pessoas que o cercam e o protegem, que ficam ao lado dele em público mesmo quando o denunciam (ou falam para Woodward) em particular? – uma história não de um personagem, mas de cumplicidade?

Tradução de Terezinha Martino

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