A chilena Gabriela Mistral, pseudônimo de Lucila Godoy Alcayaga e primeira personalidade na América Latina a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura (1945), volta a ocupar as estantes das livrarias brasileiras com a antologia poética, Balada da Estrela e Outros Poemas, organizada por Leo Cunha, em edição dedicada especialmente aos pequenos leitores, mas os grandes também se sentirão incluídos. O livro reúne 19 poemas da escritora cujo tema comum é a infância.
Os poemas de Gabriela Mistral lembram cantigas infantis, muitos deles inclusive foram musicados. As cantigas de roda foram, aliás, uma das fontes de inspiração da escritora, cujos textos buscavam se aproximar da literatura oral e do folclore, como se lê no poema Dá-me tua Mão, que abre o volume: “Dá-me tua mão, e dançaremos;/ dá-me tua mão, e me amarás./ Como uma flor, então seremos,/ como uma flor, e nada mais...”
A paisagem que Mistral traz à tona em seus versos é a de Montegrande, cidade chilena onde passou a sua infância e onde “As montanhas se desfazem,/ e o gado está perdido; / o sol regressa à fornalha:/ todo o mundo está fugido”. Lembra Mariana Ianelli, no prefácio da edição, que “a menina do vale cresceu, tornou-se poeta, mudou de casa, mudou de nome, viajou o mundo, viveu em diferentes cidades grandes, de diferentes países, mas a alma daquela vida antes, no campo, continuou com ela. Era o coração de sua poesia”.
Apesar de ter viajado muito, como educadora e diplomata, seu desejo era o de ser enterrada em sua terra natal, e foi o que aconteceu. Mistral morreu nos Estados Unidos, mas é em Montegrande que está sepultada. Lá onde “A bicharada te rodeia; e cumprimenta farejando”, como se lê no poema Animais.
Não poderia faltar, nessa antologia recheada de lembranças da infância, a noite de Natal, “noite de deslumbramentos”, como ela afirma. Mas a infância de Mistral tem também um lado sombrio, pois, mesmo num poema festivo como esse, a voz lírica suplica que Noel “não esqueça a Marta, que também/ deixa o sapatinho na janela./ É vizinha que perdeu a mãe,/ e desde então eu cuido dela”. No já mencionado poema Animais, em meio à bicharada feliz, a poeta lembra dos “meninos perdidos, obscuros” que parecem tentar encontrar abrigo e carinho, não entre os seres humanos, mas entre os bichos que compõem os versos.
Aqui se poderia resgatar um pouco da biografia de Gabriela Mistral, ela mesma abandonada pelo pai, a quem sempre amou, aos três anos de idade. No poema Achado, um menino é visto dormindo solitário sobre espigas, e talvez no outro dia ele não esteja mais lá, provavelmente “se evapore como/ geada no vinhedo...”. Em Pezinhos, destaca-se a seguinte indagação: “Pezinhos de menino,/ de frio, azulados./ Quem os vê e não os cobre./ Deus amado?”.
Caberia refazer, para pensar os poemas de Mistral, a reflexão do dramaturgo polonês Tadeusz Kantor sobre o quarto de infância. Diz ele: “O quarto de minha infância/ é escuro, uma TOCA atravancada./ Não é verdade que o quarto de nossa infância/ permanece ensolarado e luminoso em nossa memória./ É somente nos maneirismos da convenção literária/ que ele se apresenta assim”.
Nesta breve antologia, Mistral não cai em momento algum nesses “maneirismos da convenção literária”; ao contrário, muitas vezes ela mostra o lado menos ensolarado da infância, aquele cheio de medos e perdas. No poema Estrelinha, não falaria a poeta sobre a morte quando se refere à menina que tem no peito uma estrela? Nesses versos, a casa se enche de “comadres trêmulas./ Algumas me tocam,/ e outras me beijam!” e “Me bendizem todas/ meu amor alerta:/ ah, deixem dormir/ minha breve estrela!”.
As crianças retratadas por Mistral eram as crianças pobres, que ela via principalmente em Montegrande, e que a tocaram de tal maneira que destinou a elas, em seu testamento, parte do dinheiro arrecadado com a venda de seus livros.
Há também versos dedicados à maternidade, embora Gabriela Mistral nunca tenha casado e tido filhos; ela adotou, porém, um sobrinho, que, já adulto, cometeu suicídio no Brasil, quando a poeta residia no nosso país. Muitos de seus poemas podem ser vistos como uma homenagem à sua mãe, que a criou sozinha. Em A Noite, afirma-se: “Não é apenas meu filho/ que eu embalo neste verso:/ a Terra já vai dormindo/ no doce vaivém do berço”.
Já o poema Medo fala de uma mãe que teme perder a filha: “E menos quero que, um dia/ ela vire uma rainha./ Seria levada a um trono/ que meus pés não alcançariam./ E, quando viesse a noite,/ niná-la eu não poderia./ Não quero que minha filha/ vire um dia uma rainha”.
Os poemas de Mistral, nesta edição brasileira, são ilustrados pela também chilena Leonor Pérez, que trabalha com colagens e cores suaves, imprimindo delicadeza aos versos da poeta.*DIRCE WALTRICK DO AMARANTE AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘A BIBLIOTECA E A FORMAÇÃO DO LEITOR INFANTOJUVENIL: CONVERSA COM PAIS E PROFESSORES’ (ILUMINURAS)
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