Garantias para um futuro obscuro

Se a liberdade de imprensa for suspensa e o estado de sítio decretado, o voto aberto será essencial

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Por Renato Janine Ribeiro
Atualização:

Estamos numa época de semi-unanimidades, em que quase todos se indignam com as mesmas coisas e no entanto elas continuam existindo; melhor dizendo, em que certas coisas parecem tão erradas que a solução para elas é simples. O exemplo do mês é a exigência de voto aberto para todos os assuntos no Legislativo, posta na ordem do dia pela absolvição do senador Renan Calheiros no processo por sua cassação. Esta questão exige debate amplo, conceitual e pragmático. Temos de começar pela idéia de representação democrática. A representação é um dos eixos da democracia, na medida em que o resíduo de despotismo que há em todo poder executivo é limitado ou monitorado quando os cidadãos o controlam, mediante um organismo coletivo eleito no qual vontades opostas estão representadas. O executivo é uno, o legislativo é plural. Os dois representam o povo, mas o caráter plural e mesmo conflituoso do legislativo lhe confere uma natureza mais democrática - e mais "representativa" - do que o poder executivo. Disso podemos deduzir quem pode usar o voto secreto e quem, o voto aberto. Os representados devem utilizar o voto secreto, para proteger-se de perseguições. O voto (em francês, voix, voz ou voeu, anseio) é deles, ninguém tem o direito de saber qual foi. Toda eleição política exige o sigilo do sufrágio. Já os representantes devem votar em aberto, porque o voto não é deles, é nosso. São nossos procuradores, e por isso temos de saber o que fazem. Este é o princípio geral, corretamente enunciado na imprensa. Contudo, o que se esquece na argumentação usual é que, para o voto em aberto do parlamentar valer, não basta haver a representação enquanto eleição. É preciso liberdade de expressão ou de imprensa. O deputado vota e isso é controlado pelo povo; mas, para esse controle, é preciso conhecermos seu voto. Ora, nossos apressados defensores do voto aberto esquecem que a Constituição prevê, em certos casos, a suspensão da liberdade de imprensa. Não falo numa constituição ditatorial; falo numa Carta democrática que admite restrições à liberdade, quando o País estiver ameaçado por guerra externa ou comoção interna. Concordo que possa ser necessário o estado de sítio, às vezes; mas, nessas ocasiões, o voto aberto terá papel exatamente oposto ao que seus defensores pretendem. Se ele for aberto e não houver liberdade de imprensa, o povo não saberá como seu representante votou - mas o governo saberá. Esse é um enorme perigo para a sociedade. Os constituintes de 1988 foram sábios neste ponto, proibindo emendar a Constituição na vigência do estado de sítio. Já nossos legisladores atuais, talvez porque há muito tempo saiu de cena a ditadura, agora abrem a porta para uma situação provavelmente rara, mas certamente desastrosa. Este é um detalhe? Não, pois diz respeito à essência da representação. Ela não se define de vez por todas no dia da eleição. Ela continua pelo mandato inteiro. Ela se reforça pela liberdade de expressão. Sem esta, a representação padece. Mas vamos tomar o assunto Calheiros por inteiro. Vários reclamaram que ele não foi cassado "por pouco", que faltaram só cinco votos para isso. Eu, ao contrário, acho uma temeridade permitir que metade mais um dos membros de um órgão cassem qualquer membro por uma acusação vaga de falta ao decoro parlamentar - termo que não é um conceito, carece de definição precisa e que mesmo os defensores da cassação dele diziam ter sentido basicamente político. No passado, eram necessários dois terços. Imaginemos um governo, no começo do mandato, com forte apoio parlamentar - como foi o caso tanto de Collor, FHC e Lula. Imaginemos que levasse a julgamento, na Câmara e no Senado, os oposicionistas mais destacados e os cassasse, sempre invocando algo assim impreciso. Não é um risco enorme? O suplente substituiria o titular, a proporção dos partidos ou coligações não seria alterada, mas as lideranças seriam decapitadas. Talvez precisemos definir outro modo de processar os parlamentares. Em alguns países o presidente, no curso do mandato, só é julgado por crimes relativos ao exercício do cargo; se cometer crimes comuns, recebe um tratamento majestático, somente indo a juízo após o mandato. Isso se justifica. A decisão soberana do povo quanto ao chefe de governo não pode depender de um caso, ainda que sério, localizado. O problema é que acabamos estendendo essa imunidade provisória a um conjunto enorme de pessoas, quase seiscentas só no Congresso. E o julgamento deste, quanto ao decoro, acaba sendo mais político do que qualquer outra coisa. Uma instância deveria ser criada, que preserve a independência e as prerrogativas do Parlamento, mas que não seja tão corporativista - talvez tribunais mistos para julgar os congressistas, com juízes e parlamentares, com um corpo qualificado de assessores. Assim evitaríamos a manipulação partidária e a sensação tão amarga de impunidade e desrespeito aos cidadãos. Mas não resolvemos isso com soluções mágicas ou apressadas.

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