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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

'Não idealizo nem romantizo maternidade', diz Maria Fernanda Cândido

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Por Redação
Atualização:

Maria Fernanda Cândido. Foto: Lucas Seixas

 

Para Maria Fernanda Cândido é difícil falar sobre o presente sem voltar ao passado. A atriz, que também é uma das sócias-fundadoras da Casa do Saber, frequentemente prefere relembrar o período da Grécia antiga ou retorna ao iluminismo para tentar entender o cerne de situações atuais. Entusiasta do debate, ela agora media a série de aulas online O Desafio Feminino ministradas pela  psicanalista Maria Homem e com uma convidada diferente a cada encontro. Temas como maternidade, a jornada feminina e o trabalho, sexualidade e a idealização do comportamento da mulher estão no cardápio. "O curso não nasceu por isso, mas acho que com a pandemia colocamos uma lente de aumento em muitas questões. É um momento propício para a reflexão", diz à repórter Marcela Paes. Atualmente em Paris, onde passa a quarentena com os filhos e o marido, a atriz acha que o formato online, mesmo em campos como o do teatro, pode ter vindo para ficar. "Isso está nos permitindo levar as artes dramáticas pra lugares que não conseguíamos chegar.

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Leia abaixo a entrevista com a atriz.

Como lida com as cobranças do "ser mulher"?

Bom, acho que não dá pra responder essa pergunta sem entender que estamos nessa jornada há séculos, milênios. Desde os gregos, a mulher era cidadão de terceiro escalão.. Depois vem a era cristã que tem essa visão esquizofrênica da mulher que ou é santa ou é pecadora. No iluminismo tivemos a frase Liberdade, Fraternidade e Igualdade, mas não para mulheres. Toda questão do cuidado, em geral, com a casa, com o outro, com a aparência, com os filhos é atribuída muito mais à mulher. Ao meu ver isso é muito fruto do capitalismo. Procuro não estar refém dessas ideias, da comparação do 'eu tenho e você não tem', Embora eu esteja inserida dentro desse sistema.

Você se tornou feminista cedo?

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Não, não foi logo na minha juventude assim não. Posso dizer que foi algo que ganhou força na última década, depois de ter tido os meus dois filhos. Hoje é uma reflexão bem mais presente no meu dia a dia, que orienta também um pouco das minhas leituras, do meu pensamento.

Por que o feminismo ainda enfrenta muita crítica e resistência por parte de algumas mulheres?

Eu acho que toda situação dada, por mais limitadora que seja, também traz uma certa dose de conforto. Tem um trecho da Clarice Lispector em que ela fala de uma terceira perna. É algo assim 'eu tenho uma terceira perna, essa terceira perna me deixa estável, me dá segurança, estabilidade, porém, com essa terceira perna, eu não consigo andar'. Todos nós sofremos muito, não só mulheres, mas os homens também, com esses papéis pré-definidos. É muita pressão, em cima das costas de ambos. Só que nesse quadro as mulheres ainda têm muita mais desvantagens, uma diferença de valoração.

Já sofreu um caso claro de machismo?

Acho que todas nós vivenciamos isso no nosso cotidiano. A mulher é cortada se está desenvolvendo um pensamento, um raciocínio... Hoje melhorou um pouco porque muitos homens percebem quando estão fazendo isso, se policiam. Às vezes também acontece de você ter uma ideia e ver que ela foi sutilmente apropriada pelo outro. São coisas cotidianas, às vezes pequenas, mas que acontecem.

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Recentemente nós tivemos um episódio emblemático de uma menina de 11 anos que foi criticada por querer abortar após um estupro. A mulher ainda não tem ingerência sobre o próprio corpo.

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Sim, é isso. E Por quê? Isso passa exatamente pela virada cristã. Eu sou católica, não se trata de uma crítica à religião. Mas o caminho das coisas precisa ser analisado historicamente. Em que medida a sacralização desse corpo nos colocou também, de uma certa maneira, dentro de uma jaula. São construções históricas que não necessariamente estão funcionando mais. Precisamos jogar luz nisso tudo pra realmente fazer um debate realista. Muitas mulheres morrem por essa razão, é uma realidade dura. Precisamos deixar a verdade penetrar em nós.

Como fazer isso? 

É importante que essa discussão aconteça, mas que exista um aprofundamento. Se não houver uma real compreensão também por parte da população não adianta, entende? A lei pura e simples não cumprirá seu papel se não for entendida, se não vier acompanhada de uma consciência dos nossos direito e deveres, da separação entre estado e religião.

Acha que o Brasil está atrasado nessa questão?

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Eu acho que o Brasil está no caminho da mudança. Essa discussão está na pauta como tantas outras. Não sei se podemos usar a palavra atrasado. Se compararmos com outros países que já conseguiram entender a importância disso, sim. Mas estamos criando a nossa história, estamos fazendo a nossa discussão.

Quais os seus sentimentos em relação à maternidade?

Eu queria muito ter filhos, tinha esse desejo desde jovem. Tive meu primeiro filho e logo quis ter o meu segundo, É muito desafiador você criar e educar um ser humano, uma pessoa. É uma tarefa muito dura, muito difícil. E também muito bonita, muito gratificante. É um amor que se constrói no dia a dia. A gente também vai entendendo que não existe assim essa onipotência materna. Isso é muito vendido para as mães e não é verdade. Sou muito feliz assim, sendo mãe, mas não romantizo, não idealizo. Acho que fica cada vez mais claro de que a autorrealização de uma pessoa não precisa necessariamente estar ligado à maternidade ou à paternidade.

Muitas pessoas estão com dificuldade em administrar a escola dos filhos em casa, o trabalho, as tarefas domésticas. Como está sendo para você?

Nós passamos os três primeiros meses da pandemia em SP e depois, quando a situação melhorou na França, viemos para Paris. Confesso que achei bastante desafiador, em muitos momentos foi muito cansativo. Mas, por outro lado, aconteceram coisas muito positivas também. Teve muito aprendizado, principalmente de convivência. O confinamento fez com que a gente aprendesse muito um sobre o outro. Essa intimidade foi um exercício de tolerância.

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Estar em casa com seus filhos e seu marido também remeteu ao papel da mulher que cuida?

Claro. Eu tive que explicar para eles que quando eles faziam coisas dentro da casa não era um favor para mim, era uma contribuição pro coletivo daquela família. Isso parece bobo e parece simples, mas na verdade não é, é uma coisa forte, porque mexe com a questão do feminino e da imagem que se faz do feminino. Por que as pessoas acham que estão me fazendo um favor? Porque as pessoas pensam assim? Aqui em casa todos sempre colaboraram de alguma maneira porque nós temos pouquíssima ajuda, mas na pandemia ficamos totalmente isolados, sem ninguém de fora para ajudar na casa. Tivemos que conversar sobre tudo isso.

O que você acha da atuação do governo brasileiro no controle da pandemia?

Infelizmente não estamos tendo um controle adequado. Acho que existe um esforço por parte de muitas autoridades, de governos. Existem prefeitos e governadores que estão de fato fazendo a sua parte, tentando colaborar. Os próprios brasileiros também estão muito empenhados, mas, no que diz respeito a uma liderança nacional não estamos indo bem.

O setor cultural foi severamente afetado na pandemia. Como acha que o meio vai sair dessa situação?

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Acho que infelizmente seremos um dos últimos setores a retomar as atividades como elas eram antes da pandemia. Acho que muitos profissionais terão que ir para outros campos, criar soluções alternativas para a subsistência. Ainda é difícil avaliar o quanto fomos afetados, mas acho que vamos levar um tempo maior que outros meios para nos reconstruímos totalmente.

Crê que a  maneira de criar artisticamente vai mudar permanentemente?

Acho que já começamos a mudar, ainda que com certa resistência. Estamos tateando, experimentando na dramaturgia... Não sei se vamos chamar as lives de teatro no futuro, pode ser que a gente crie um novo nome pra isso. Mas o fato é que o processo está acontecendo e de uma maneira bastante interessante. Não podemos minimizar essa experiência, porque isso está nos permitindo levar as artes dramáticas pra lugares que não conseguíamos chegar.

Percebeu isso nos trabalhos que vem fazendo?

Sim, e isso não pode ser desprezado. Talvez a gente continue a fazer as coisas online mesmo quando os teatros voltarem, quando tivermos a vacina. Não precisamos abandonar, porque tem um lado positivo muito forte. Eu fiz uma leitura dramática na semana passada e recebi tantas mensagens de lugares inesperados, em que eu nunca levei uma peça de teatro. Quando fazemos turnê com uma peça passamos só pelas grandes capitais. Dessa maneira, no online, conseguimos atingir as pessoas que estão fora desse eixo.

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Muita gente sente falta de te ver em novelas. É algo que você pensa voltar a fazer? 

Olha, minha paixão é o cinema, tenho um amor profundo pelo teatro e gosto muito de fazer televisão. Eu procuro escolher os trabalhos me baseando mais pelo projeto, pelo personagem, pela obra. O veículo em si, pra mim, nem é o que importa mais. Acabei as filmagens de um longa na Itália e agora começo uma peça com outros oito atores, que será transmitida pelo Zoom.

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