Drauzio Varella tornou-se conhecido a partir de 1999, quando foi publicado Estação Carandiru, relato seco, direto e contundente do maior presídio da América do Sul. O livro ganhou importantes prêmios literários, vendeu mais de 500 mil cópias e chegou ao cinema na adaptação de Hector Babenco. "Foi algo inesperado, fiquei atordoado com tanto reconhecimento", conta o médico oncologista, que trabalhou como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo por treze anos. "Por isso, precisei me afastar do assunto como escritor."É o que explica o longo período entre Estação Carandiru e Carcereiros, obra que chega às livrarias na segunda-feira, também editado pela Companhia das Letras - a versão para e-book já está disponível. Segunda parte de uma trilogia (a seguinte, Prisioneiras, ainda está na fase inicial e vai mostrar seu trabalho na Penitenciária Feminina de São Paulo), Carcereiros relata histórias dramáticas e engraçadas dos homens encarregados de manter controlada a temperatura de uma panela de pressão sempre prestes a estourar.Drauzio criou relações de amizade com alguns deles, como Valdemar Gonçalves, José Araújo, Mavi. "De alguns, até me tornei amigo íntimo", relata ele que, mesmo depois da desativação do Carandiru, em 2002, mantém encontros mensais, quando trocam ideias, contam novidades, revivem histórias pitorescas. Em um deles, o médico ouviu um fato tão saboroso envolvendo a mulher de um presidiário que, ao chegar em casa, resolveu escrever a respeito. "Fiquei tão empolgado com o trabalho que decidi fazer outro livro."Isso aconteceu há dois anos e, desde então, Drauzio Varella utilizou as (poucas) horas vagas para relembrar, escrever e reescrever as histórias contidas em Carcereiros. Como viveu em contato direto com aqueles homens, o médico consegue traçar um perfil impecável de uma função que, mal remunerada, torna inevitável o complemento de bicos como segurança de casas noturnas.Mais: o contato direto e constante com a violência - ali, havia desde os presos que cometeram delitos leves até os condenados por assassinato e estupro - modelou o caráter dos agentes penitenciários, transformados em "especialistas" em psicologia e sociologia - com isso, desenvolvem uma espécie de radar capaz de detectar pequenos indícios e movimentações que, se não fossem previstos, culminariam em tragédias.É exemplar, nesse sentido, o primeiro texto do livro, Um Dia Trágico, que narra a tensão crescente que marcou 2 de outubro de 1992, certamente a pior data da história do sistema carcerário brasileiro: mal conduzida pela Polícia Militar, uma rebelião no Pavilhão Nove tomou proporções incontroláveis e, depois da invasão promovida pelos policiais na madrugada, o resultado foram 111 prisioneiros mortos."Se a situação ficasse a cargo dos carcereiros, certamente não teria acontecido aquilo", acredita Drauzio. "Haveria mortes, é certo, pois se tratava de uma rebelião, mas não naquela proporção." É o que ele comprova com Um Dia Trágico, que acompanha o trabalho dos agentes penitenciários que, naquele dia, trabalhavam no Pavilhão Oito - graças à sua astúcia, os presos aceitaram ficar trancados em suas celas, o que evitou um prolongamento da desastrada ação policial.O Massacre do Carandiru, aliás, como ficou conhecido o incidente, inspira Drauzio Varella a apresentar uma contundente reflexão: "A partir do dia 2 de outubro de 1992, os presos se organizaram para assumir o poder no interior dos presídios, criando um nível de cogestão interna que jamais seria admitido se não tivesse ocorrido aquele evento absurdo", escreve. Ou seja, o surgimento de facções criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital), cujos atentados em maio de 2006 quase pararam a capital paulista por quase uma semana, são frutos da mudança na forma de condução do gerenciamento penitenciário."Hoje em dia, os carcereiros praticamente não têm mais nenhum contato com os presos", observa Drauzio. "O que dá total liberdade de ação aos condenados." Na época em que frequentou a Casa de Detenção, o médico descobriu que a relação era outra. Os carcereiros respeitavam o código de conduta dos presos e só intervinham em momentos estritamente necessários. Drauzio conta também que os agentes não praticavam a tortura, como muitos acreditam. "Claro que havia atos de violência, mas não em um nível elevado - quem fazia isso eram os próprios prisioneiros, em seus atos de 'justiça'."O código de conduta, aliás, é mais rígido que as leis que regem a sociedade, comenta o médico escritor. Afinal, se fora da cadeia uma infinidade de recursos prolonga o julgamento de um processo, dentro da penitenciária as sentenças são rapidamente definidas e executadas.Drauzio relata também os dramas dos carcereiros, cujo contato com a violência acaba contaminando sua vida particular. Acontece de alguns se renderem ao alcoolismo e ao adultério, como formas de desafogar a tensão constante do trabalho. "Afinal, eles vivem uma espécie de prisão domiciliar ao contrário, pois passam o dia na penitenciária e dormem em casa à noite", justifica.Surgem, assim, personagens fascinantes como o agente Mano Gordo, magro como uma varapau, dono de um enorme mau humor, só aliviado diante da mulher, a enérgica Ester, famosa pelo constante destempero. No livro, Drauzio relata as peripécias de Mano Gordo para evitar que Ester descobrisse seu caso com Emília, prima da própria esposa.Ou ainda seu Romeu, funcionário intransigente e rigoroso na manutenção da ordem, daqueles que batiam a porta com força para anunciar sua presença. "Quando ele chegava, todos, presidiários e subalternos, tinham de manter a posição de sentido, só aliviada com um sinal seu", diverte-se Drauzio, que relata ainda a absurda cena vivenciada por outro agente, Irani Moreira: aguardando na sala do chefe, ele é surpreendido com a entrada de Romeu totalmente nu, acompanhado de dois presos auxiliares.Romeu acabara de sair do banho e, enquanto falava normalmente com Irani, era secado e polvilhado com talco nas axilas e na região do sexo pelos ajudantes. "Encerrada a operação, os dois o ajudaram a vestir o terno, dar o laço na gravata e calçar as meias e os sapatos irrepreensivelmente engraxados", escreve. Com rara percepção para ouvir e contar fatos, Drauzio Varella, em Carcereiros, compara-se a Irani, que se gaba de ter mais histórias para contar que duas manicures juntas.
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