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História: Escravidão no Brasil gerou brigas políticas e revoltas

Movimentos pediam a abolição, que contrariava interesses econômicos do novo império

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
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Sete de setembro de 1822; 13 de maio de 1888. Quase oito décadas separam a Proclamação da Independência do Brasil da Abolição da Escravidão no País. Ela, no entanto, já era tema desde o final do século 18 – seja para aqueles que pediam seu fim, seja para aqueles que viam a abolição como empecilho ao nascimento do império brasileiro, atrasando o processo de libertação. Em 1819, o Brasil tinha cerca de 1,1 milhão de escravizados, o que correspondia a um quarto da população. Cerca de 60% desse total vivia no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, na Bahia e no Maranhão. Os números reforçam um caminho recente na historiografia: recuperar e compreender a situação dos escravizados por volta de 1822 significa olhar para o que acontecia no País fora do eixo formado pelo Rio de Janeiro, capital do império, e São Paulo, onde foi proclamada a independência.

Quadro 'Mercado de Negros', pintado porJohann Moritz Rugendas, entre 1827-1835 Foto: Acervo Cultura Inglesa-RJ

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“Os principais grupos de sustentação a d. Pedro, de enorme força política, estavam vinculados às duas cidades e construíram uma memória em muitos sentidos excludente, afirmada sobre o roteiro tradicional do 7 de setembro”, diz a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, da USP, que acaba de lançar Ideias em Confronto: Embates pelo Poder na Independência no Brasil (1808-1825), pela Todavia. “Os movimentos ocorridos na Bahia, no Maranhão e no Pará, por exemplo, dão conta da complexidade da massa social do período, mostram que ela não é uniforme”, continua, fazendo referências aos movimentos que ofereciam não apenas uma ideia diferente de independência mas, principalmente, na maior parte dos casos, contou com a presença de libertos e escravizados.

Insurreição

Um deles foi a Conjuração Baiana, ou Conjuração dos Alfaiates, ocorrida na Bahia entre 1797 e 1798 – a primeira de uma série de rebeliões que seriam realizadas na capitania ao longos das próximas décadas. Os partidários do movimento vinham das classes populares, eram mulatos e negros livres ou libertos, profissionais urbanos (entre eles vários alfaiates, daí o nome da rebelião), artesãos, soldados e escravizados. Entre seus principais líderes estavam o médico Cipriano Barata e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus Nascimento, filhos de negros libertos.  A independência de Portugal era um dos objetivos, mas com a proposta de proclamação da República. E outra das ideias defendidas era o fim da escravidão, resultado, entre outras coisas, da influência das ideias que chegavam ao Brasil desde o início da insurreição de escravizados nas Antilhas, em 1791 (e que resultaria na criação do Haiti, em 1801). As más condições de vida em Salvador, assim como a falta de alimentos, foram estopim para a rebelião. “A Conjuração é significativa por muitos motivos. Ela quebra com a ideia de que a revolução é sempre feita por um grupo pequeno de pessoas. Não, a população participou de maneira ativa. Vivendo naquelas condições, com dificuldades econômicas, perseguições, prisões, eram pessoas que não tinham o que perder”, acredita a historiadora Lucia Helena Oliveira Silva, professora do Departamento de História da Unesp. Para ela, a Conjuração deve ocupar papel central na história daquele período. “A revolta mais radical no final de século 18 não foi a Inconfidência Mineira, que mais tarde seria recuperada pela República como símbolo. Pelo caráter popular, a Conjuração tem um significado muito mais amplo.” “O mito de um Brasil harmônico faz com que a gente não olhe a participação popular nos processos. São movimentos encabeçados por homens negros ou que têm a questão racial como mote”, concorda a historiadora e professora Ynaê Lopes dos Santos, da Universidade Federal Fluminense, autora de Racismo Brasileiro: Uma História da Formação do País (Todavia). Após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, e antes da Proclamação da Independência, em 1822, o Nordeste foi palco de outra rebelião, que ficou conhecida como Revolta Pernambucana de 1817. “A situação do Nordeste mudou muito após a chegada da corte ao Brasil. A região deixa de ser o centro do poder, agora no Rio de Janeiro. Mas a maior parte dos impostos que sustentavam a corte vinha do Nordeste. Em outras palavras, a região produzia a riqueza, mas não usufruía dela”, explica Lucia Helena. Os revoltosos tiveram mais sucesso do que os colegas baianos, ao menos por um tempo, O governador da capitania de Pernambuco fugiu para o Rio de Janeiro; o governo provisório aprovou medidas como a instauração de três poderes e a liberdade de imprensa e credo; mas eventualmente abandonou umas da reivindicações originais, a abolição da escravatura, defendida por líderes do movimento, como o comerciante Domingos José Martins, que acabou morto quando as tropas portuguesas eventualmente derrotaram os revolucionários. 

Quadro de José Bonifácio Andrada e Silva, pintado por Benedito Calixto Foto: Museu Paulista

À época da proclamação da Independência, a escravidão também era discutida na corte. O tema estava presente em especial na imprensa da época, com destaque para personagens como o jornalista Joaquim Gonçalves Ledo, republicano que defendia a imediata abolição da escravatura. “Há vários autores que vão tratar do tema com algum distanciamento, por não serem proprietários de terras. Pequenos grupos vão se articular, ainda que de maneira incipiente. E isso tem a ver também com o que acontecia na América Latina. Há o caso do Haiti, mas também da Argentina, do Chile, da Colômbia. Se havia influência de ideias que vinham da Europa, ainda precisamos fazer leitura mais aprofundada do papel que a região teve nesse curso de ideias”, diz Lucia Helena. 

Pacto Social

Em 1823, foi reunida uma assembleia constituinte com o objetivo de dar forma às leis do novo império brasileiro. Uma das questões centrais tinha como objetivo definir uma ideia de nação – e aqueles que dela fariam parte como cidadãos. Como mostra a professora Cecilia Helena de Salles Oliveira em Ideias e Confronto, havia consenso entre os deputados quanto à exclusão de escravizados e indígenas do pacto social que se formava. No entanto, a questão dos libertos – ou seja, escravizados a quem se concedeu, por alforria ou emancipação, a liberdade – gerou debate. Deputados como José da Silva Lisboa defendiam a ideia de que os libertos fossem considerados cidadãos. O objetivo, afirma a professora, era “iniciar o processo gradual de emancipação dos escravizados e criar homogeneidade civil, política e jurídica entre os habitantes da nação”. Outros deputados, porém, como João Severino Maciel, propunham que a cidadania fosse concedida apenas a libertos nascidos no Brasil.  No texto da Constituinte de 1823, venceu a proposta de Silva Lisboa, mas outra sugestão de Maciel, que determinava quais cidadãos poderiam participar de eleições, como votantes ou candidatos, colocando como um dos critérios um rendimento anual mínimo, acabou aceita. De qualquer forma, brigas políticas fizeram com que D. Pedro I fechasse a constituinte. Um novo texto constitucional viria em 1824, mas sem mencionar a emancipação dos escravos. Além disso, o governo resolveu tratar as pressões inglesas pelo fim do tráfico de africanos como uma questão diplomática, furtando-se de tratar o tema em forma de lei. “O momento da independência é um momento de grandes transformações mundiais”, diz ao Estadão Cecilia Helena. “O Brasil se insere neste contexto externo por meio de suas atividades mercantilistas. Para a classe dominante, não havia problema no tráfico ou na escravidão. Afinal, era o trabalho escravo que permitia a competitividade no mercado. Nesse sentido, os processos políticos de configurações constitucionais levaram ao recrudescimento da escravidão.”  Ao mesmo tempo, nova rebeliões aconteciam. Em Pernambuco, em 1824, surgiu a Confederação do Equador, que tinha a abolição como uma de suas bandeiras. Na primeira metade do século 19, na Bahia, ocorreram 30 revoltas de escravizados, 15 delas nos anos 1820, de acordo com levantamento do historiador João José Reis no Dicionário da Escravidão e Liberdade (Companhia das Letras). A lista inclui ainda conflitos posteriores, como a Cabanagem, no Pará.  “Esses movimentos foram controlados com violência pelo Estado brasileiro. Havia o medo com relação ao que aconteceu com o Haiti, mas não apenas isso. O Brasil tornara-se uma monarquia em meio a um mar republicano. E a escravidão era parte fundamental da organização social”, afirma Ynaê. Cecilia Helena concorda. “Em 1826 (quando é assinado um tratado antitráfico a valer a partir de 1830), o debate ganha outros rumos, mas também acaba derrotado pela dinâmica da produção”, explica.  Lucia Helena relembra a representação feita por José Bonifácio em 1823, propondo a gradual extinção da escravatura. “Ele entendia que moralmente a escravidão era indefensável. Mas sabia que essa era, então, uma causa perdida”, diz ela, referindo-se à proposta de limitação do tráfico – o que só começaria a acontecer três décadas depois, com a Lei Eusébio de Queirós. 

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