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Os Três Mais Velhos

Ah, aquelas famílias enormes, do tempo em que as noites não tinham pílula nem TV...

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Faço parte de uma confraria doméstica, tão informal quanto compulsória, que cresci ouvindo ser chamada de “Os Três Mais Velhos”. Fôssemos nós os mosqueteiros de Alexandre Dumas e seria eu, chegado ao mundo depois do Rodrigo e antes do Otávio, um Porthos tropical entre Athos e Aramis. Fosse hoje, neste tempo de proles que mal repõem seus pais, ou nem isso, e não nos anos 1940, simplesmente já não caberia o rótulo “Os Três Mais Velhos” - natural e mesmo inevitável em casos como o de Hugo e Wanda, pais de 11 filhos.

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Você leu bem: 11. Um time feminino de basquete e um masculino de vôlei. Imagine uma criatura que até os 40 anos tenha estado grávida durante 99 meses - 8,25 anos, ou 20,625% de seu tempo de vida até então, converteria o Otávio, nossa versão familiar de Malba Tahan, o homem que calculava. Ponha aí 424 semanas de gestação, equivalentes a uns 40% do que durava aquele casamento. Isso, que eu saiba, sem reclamações da parte mais diretamente concernida. Deus mandava. A tal sementinha que os papais plantavam, sem planejamento agrícola, nos canteiros férteis das mamães. O baby boom com que a humanidade se ressarciu das carências e penares da Segunda Guerra não explica tudo. A proliferação familiar tinha a ver também com a inexistência da pílula, é claro, e da televisão, que no Brasil só veio em 1950. Em Belo Horizonte, onde nasci, ela demorou ainda mais a chegar. Eu tinha 10 anos no dia de 1955 em que meus pais, com a excitação de quem fosse ver um Ovni, atulharam nosso Chevrolet 1939 com a filharada, àquela altura em número de 6, para quem fôssemos nos embasbacar diante da vitrine da floricultura Gardênia, na esquina de Alagoas com Cristóvão Colombo, por detrás da qual tremelicava em preto e branco a tela miúda e abaulada de um televisor. Novidadeiros mais endinheirados cuidaram logo de adquirir o seu, invariavelmente monstrengos em cujo topo devia repousar uma antena telescópica aberta em V. Repousar não é bem o verbo, pois a cada instante era preciso levantar-se do sofá de pés palito, ou da Cadeira do Papai, para manipular os dois chifres da geringonça, em cujas pontas se espetavam tufos de Bombril, gambiarra graças à qual a imagem talvez viesse a sossegar.

Lá em casa, lar católico onde não se admitiam gibis e outras tentações do mundo, o primeiro televisor só deu entrada em 1960, sob a forma de um Philco Predicta - aparelho que, por seu desenho inusitado, hoje me arrependo de não haver preservado de um desses bota-foras heroicos com que as famílias se desembaraçam de quinquilharias. A tela, em cujo traseiro bojudo se albergava o tubo de imagem, ficava sobre uma caixa de madeira, podendo ser girada para os lados. Me pergunto se terá sido coincidência o nascimento da caçula Ana Maria, fechando o time dos 11, ter ocorrido pouco tempo depois de meus pais haverem descoberto, naquele Philco Predicta, uma alternativa de programação noturna. Ou foi Deus que mandou parar?

Não só lá em casa, evidentemente. Na casa ao lado, o tio João Antônio e a tia Yedda também se desdobraram 11 vezes - 4 enxovais cor de rosa, 7 azul-claro, e aquele mar de fraldas exclusivamente laváveis a embandeirar os varais no quintal. Sem contar as 3 meninas e os 2 meninos dos cunhados Ciro e Teresa, que, com os pais, lá fizeram pouso por 6 anos. Densidade demográfica comparável à então verificada nos poucos metros quadrados compreendidos pelo 164 e o 178 da Rua Padre Severino, talvez só numa dessas metrópoles chinesas em cujas vielas se registram congestionamentos de pedestres.

A rigor, lá em casa nunca fomos 11 filhos, pois quando a Ângela morreu, aos 4 para 5 anos, acidentalmente envenenada com pólvora de fogos de artifício, 5 de nós ainda estavam por vir. A conta voltou a ser 11 com a incorporação, mais adiante, do João Carlos, quando o pai dele (e de outros 9 curumins) morreu subitamente, durante uma caçada. Curioso como a inflação dos ventres maternos (os paternos mereceriam crônica à parte), naquele tempo, não provocava admiração mais que moderada. “Seu pai trabalhou bem!”, maliciava a patuleia no colégio. Os circunstantes só se boquiabriam ante fenômenos como o do Dr. Reis e da dona Beatriz, em que, dos 10 filhos, 3 vieram numa só tacada.

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Ninguém estranhava o volume dos rebanhos que, nos fins de semana, desembarcavam no Clube da Lareira, criado, nas imediações da cidade, por casais católicos quando não estavam procriando. Reinava ali um clima de estrita observância das regras da saudável alegria cristã, a única admissível. Ainda posso ver o cartaz que, no vestiário masculino, zelava pelo asseio de nossas almas: “Troque a roupa com recato na cabine”. Corri ao dicionário para ver o que era recato, e se eu era capaz daquilo.

Epa! Me dou conta de que, à semelhança do que se passava com Pablo Neruda, sem a respectiva poesia, “tiene muchas ramas el árbol de mi conversación” - o que me obriga a empurrar que a semana que vem, se houver, o que me propus contar sobre “Os Três Mais Velhos”.