Hymns and Prayers, uma notável peça de câmara do século 19

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

A mais recente gravação do violinista Gidon Kremer e sua Kremerata Baltica foi recebida com reservas pela crítica. Hymns and Prayers começa e termina com obras contemporâneas e coloca, no centro, uma das mais notáveis peças camerísticas do século 19. Os contemporâneos são o húngaro Stevan Kovacs Tickmayer, de 47 anos, e o georgiano Giya Kancheli, de 75; e o compositor do século 19 atende por César Franck. Aparentemente, é como misturar água e óleo. Por isso mesmo, a tendência burocrática é rejeitar gravações com tais combinações. Ora, este é o típico CD de um músico inquieto, que busca novas maneiras de surpreender nossos ouvidos. E sobretudo propõe novas maneiras de se praticar uma escuta musical ativa. Num texto curto no folheto interno, Kremer mostra o itinerário que o levou a compor o híbrido cardápio. E, seguindo-o, é possível aproximar-se de um jeito diferente destas músicas - deixando de lado até a noção de obra fechada. Kremer insinua que tudo começou com o segundo movimento do maravilhoso quinteto de Franck. "O Lento, con Molto Sentimento", diz o violinista, "instaura o clima, a atmosfera das duas outras peças. Esta combinação faz mais do que propor um contraste superficial". Em suma, se por acaso você estiver com este CD nas mãos, descubra seu segredo começando pela faixa 3, o Lento, con Molto Sentimento. Em seguida, retorne aos Oito Hinos de Tickmayer, peça para violino solo, orquestra de cordas, vibrafone e piano: são oito passos em direção à conquista de uma contemplação que aos poucos se intensifica, mas mantém a serenidade. Tickmayer estudou com Lutoslawski e Kurtág, flertou com o rock e o jazz. Também tem um lado ruidoso, mas aqui quem comparece é sua porção Gandhi.Serenidade à la Gandhi, aliás, é o que não falta ao georgiano Giya Kancheli, ontem reprimido pelas autoridades soviéticas, hoje uma das estrelas exóticas do catálogo clássico contemporâneo da ECM. Silent Prayer foi composta em 2007, dedicado a aniversários de dois amigos diletos: os 80 anos de Rostropovich e os 60 de Kremer. Prevê violino, violoncelo, vibrafone, guitarra baixo, orquestra de cordas e teipe. A emocionante voz de uma menina georgiana de 7 anos cantando em russo e eletronicamente manipulada intervém algumas vezes. A tribo franco-alemã da vanguarda contemporânea espuma de raiva diante desse tipo de música. Mas é preciso reconhecer que ela soa interessante e acessível. E não é estúpida nem cretina. Bem, depois de ouvir o lento do quinteto de Franck, os oito hinos de Tickmayer e a prece silenciosa de Kancheli, aí você estará pronto para curtir o quinteto de Franck na íntegra. São quase 40 minutos de música intensa, construída com timbres escuros, expressivos contrastes entre os modos maior e menor, além do novelo temático que se enreda entre todos os movimento com enorme requinte e austeridade. O motor que impulsiona os três movimentos é a marca registrada de Franck, a forma cíclica, onde uma célula melódica se expande e se transforma livremente, percorrendo a obra inteira. Nessa altura, não espanta tanto a veemência de Kremer e seus parceiros desde o primeiro acorde do Molto Moderato Quasi Lento. Allegro inicial. Não se trata de maneirismo nem excesso, mas de uma inovadora leitura do quinteto, aproximando-o de modo surpreendente do clima das obras contemporâneas.

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