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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Do livro ao grão

Tardes papeando na mesa do café da livraria. Veio a pandemia, perdi contatos.

Foto do author Ignácio de Loyola Brandão
Atualização:

Conheço desde criança, quando lia a Biblioteca Infantil, o slogan que vinha no final dos livrinhos: “Do pinheiro ao livro, uma realização Melhoramentos”. Quando menino ainda, voltando de trem para Araraquara, passava por Caieiras e eu via os extensos bosques de eucaliptos que eram transformadas em papel e depois em livros. Eram, para mim, tão encantados quanto as florestas das histórias de João e Maria.

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Meses atrás, saí com minha mulher para comprarmos grãos de variadas espécies. Castanhas-do-pará ou de caju, frutas secas e oleaginosas, aveia, farelo de trigo e outras que Marcia mistura com a perfeição de uma Bela Gil. Porque faz uma granola que a família inteira cobiça. Tem a mão, sabe as quantias certas, a temperatura exata, o tempo de forno. Muitos meses atrás, esperávamos um táxi passar na Rua Teodoro Sampaio, quando vimos um espaço novo, aberto depois da pandemia. Noz da Terra, grãos. Vidros e mais vidros contendo tudo o que precisávamos. Marcia, encantada: “Tem mais do que no Mercado de Pinheiros”.

Estava cheio, esperávamos, quando alguém disse: “Loyola, o que faz aqui? Não se lembra de mim? Guilherme Felipe. Vendi muito livro para você”. E já chegou outro: “E eu, então? Sou o Ricardo Souza”. Tinham sido livreiros na Cultura, naquele tempo áureo quando chegávamos e cada funcionário sabia tudo, orientava, propunha substituição correta, não tem esse, mas tem outro na mesma linha. Conheciam pessoalmente a maioria dos escritores brasileiros: se não tinha o que desejávamos, nos ajudavam, ligavam para deus e o mundo. Senti diferença na tarde em que dei ao caixa meu número de CPF, ele digitou e perguntou: “Inguinácio?”. Naquele momento, senti que algo estava se passando.

Foto ilustrativa de livros na biblioteca Djeanne Firmino, em 2021 Foto: Helcio Nagamine/Estadão

E passou. E, infelizmente, deu no que deu. Vivi na Cultura por mais de 40 anos, alguns dos melhores momentos de minha vida. Nunca esqueço: eu chegando ao meio-dia (ideia do Pedro) e sentado até 10 da noite, assinando livros. Ou os sábados com o Ives Gandra Martins servindo coxinhas e o Pedro Herz oferecendo uísque. Quem éramos? Lygia Fagundes Telles, Fábio Lucas, Ana Maria Martins, Marcos Rey e sua mulher Palma, Ivan Ângelo, Mário Chamie, Tereza Collor, Gilberto Mansur, Bruna Lombardi, Ricardo Ramos, Joyce Cavalcanti.

Ou foram tardes papeando na mesa do café da livraria com Evandro Ferreira e Leo Lama.

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Veio a pandemia, perdi contatos. Súbito, este reencontro. E aqueles vindos da livraria me oferecendo agora grãos. Do livro, um alimento, ao grão, outro alimento. Faz meses que o empório me recebe e agora chegou também Flávia Wulf, que também mexia (como dizem os mineiros) com livros. Do livro ao grão, uma realização da necessidade. E da criatividade.

* É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ZERO’ E ‘NÃO VERÁS PAÍS NENHUM’

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão

É escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e autor de 'Zero' e 'Não Verás País Nenhum'

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