A "Traviata" estreou no La Fenice e as palavras não dão bem conta da sensação de poder assistir a uma produção ali, no mesmo auditório. Curioso, no entanto, é que Veneza para mim, desde que o trem deixou a terra e a água se espalhou pelos dois lados, o que me invadiu a mente foi o terceiro ato do "Tristão e Isolda". Há, claro, o balanço pesado e vagaroso das ondas na partitura de Wagner, a associação é imediata. Wagner morreu em Veneza. Mas não é só isso. Há algo de mágico - uma magia densa, nebulosa, ocre - na cidade. E também no recanto onírico em que Tristão delira e, à beira da morte, imagina o retorno de Isolda. Essa alternância entre real e imaginário, entre ilusão e vida, morte e delírio, perpassa toda a música daquele último ato. E de alguma forma, ao menos na minha cabeça, também seguiu cada viela, cada caminho de Veneza, em seus recantos mais escuros e nas multidões luminosas. Na madrugada deserta, a companhia foi o solo do corno inglês, emulando o movimento das águas. E, no amanhecer, o fluxo da mente.
Sentei sobre o fosso, via o palco de lado, e o regente de frente. Por onde começar? O som da orquestra do La Fenice é impressionante. Esses músicos são alfabetizados no idioma da ópera, cada nota, cada frase, cada inflexão, tudo respira teatro - e há momentos em que a Traviata ressurge fresquinha no ouvido. E Chung é um espetáculo à parte, regendo sem partitura, com elegância e economia de gestos, comunicando-se à vontade com a orquestra. Não guardei o nome dos cantores e precisei agora recorrer à internet (Gianluca Terranova, tenor; Giovanni Meoni, barítono). Nada de muito especial, é preciso reconhecer. Corretos, com um ou outro maneirismo chato, mas corretos. A produção é de Robert Carsen, moderna, Violeta como uma prostituta viciada em drogas, tão envolvida com o dinheiro quanto com o amor. Mas o gênio é Verdi - que essa música continue tocando a gente desta forma tão espontânea, é incrível.