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Opinião|Uma ópera em cena, uma geração à espera de um mercado

Montagem de "Adriana Lecouvreur", de Cilea, no Theatro São Pedro, revela novos cantores e reforça necessidade de se investir na abertura de novos mercados para o gênero no Brasil

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Foto do author João Luiz Sampaio
Atualização:

De Verdi a Puccini, passando pelo verismo. A história da ópera italiana nas últimas décadas do século 19, começo do século 20, costuma ser narrada assim. E, se o repertório consagrado pelas principais casas de ópera em todo o mundo parece assinar embaixo dessa linha evolutiva, ao mesmo tempo é preciso reconhecer que ela em geral deixa de lado uma geração de autores que, no meio do caminho, participaram desse processo de transição com caminhos e linguagens próprias.

É o caso de Francesco Cilea e sua Adriana Lecouvreur, ópera que voltou aos palcos brasileiros ao longo da última semana, depois de mais de seis décadas de ausência, com uma nova montagem do Theatro São Pedro, em São Paulo. Foi uma chance de ter contato de perto com um autor que, em busca de um caminho pessoal, ajuda a revelar a diversidade de inspiração do período. Como escreve o pesquisador Sergio Casoy, Cilea "não era lá muito afeito à sangueira explícita do verismo", e por isso mesmo, ao receber o libreto de Adriana Lecouvreur, "se apaixonou pelo texto que, apesar de não rebuscado, tem todos os contornos do melodrama romântico".

 Foto: Estadão

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A história real de Adriana, a atriz de vida trágica, responsável por uma revolução na interpretação no teatro francês, remete ao século 18. Mas o tratamento dado a ela por Cilea é pura Itália do final do século 19, tanto em sua apropriação da tradição, ainda muito forte, quanto em sua absorção, não sem certa hesitação, de uma modernidade no trato da orquestra e do canto, ainda a ser totalmente experimentada. Assim, não é exagero concluir que Adriana olha menos para o passado e mais para o futuro repleto de contradições do século XX - e nesse sentido é particularmente interessante a opção do diretor cênico André Heller-Lopes de ambientar a história no tempo presente da percepção do artista como símbolo de um embate entre arte e entretenimento, com direito também a comentários sobre o papel do público nesse processo.

O espetáculo é fluente, ainda que o texto nem sempre o seja, e tem como grande trunfo a caracterização das personagens, no que conta, naturalmente, com o desempenho do time de protagonistas. O que chama atenção na caracterização da soprano Daniela Carvalho para a Adriana é a criação de um mundo próprio em cena (o desenho de luz também trabalha nesse sentido), feito de gestos e inspiração que contrastam com a dureza da movimentação da Princesa de Bouillon de Denise de Freitas, que utiliza com sabedoria as cores de sua voz em diálogo com os recursos do estilo de canto em transformação da época. Nessa história de duas mulheres, destacou-se também o tenor Eric Herrero, à vontade com a escrita do papel, unindo força e lirismo na construção das frases, sem perder de vista a artificialidade proposta pelo conceito da montagem.

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Em uma concepção que coloca no palco dois mundos, um essencial e um artificial, todo amor é passível de relativização. O de Maurizio com certeza o é, assim como o da Princesa, que leva ao ódio e à vingança. E também o de Adriana: nesse universo que cria para si, há espaço, afinal, para um sentimento que não seja uma projeção narcisista de uma visão de mundo e de si próprio dessa "humilde serva do gênio criador"? Nessa terra arrasada de amores partidos, o único que talvez se salve é o diretor de teatro Michonnet: na impossibilidade de concretizar a paixão e o desejo por Adriana, ele os substitui pelo carinho de pai. Ele precisa, afinal de contas, amar a diva, assim como ama o teatro. Aqui também caberia uma possível relativização, ainda mais no contexto do fin-de siècle europeu. Mas a intensidade da interpretação do barítono Johnny França reforça a crença no teatro como uma força que, nascida daquilo que é humano, torna-se maior do que a vida. E à qual é preciso se submeter. Em momentos como o dueto com Adriana ou em Ecco il monologo, seu Michonnet é uma revelação cênica e vocal.

E aqui surge uma outra narrativa possível para o espetáculo apresentado pelo Theatro São Pedro. Daniela Carvalho, Eric Herrero e Denise de Freitas são cantores experimentados, com passagens pelos principais palcos brasileiros. E seu desempenho pode ser celebrado como mais um passo em trajetórias profissionais consistentes. Mas a montagem também revela - e precisa ser celebrada por isso - novos nomes da ópera brasileira aos quais se deve prestar atenção. Entre os cantores, além de Johnny França, é preciso destacar a desenvoltura com que Daniel Umbelino cria o papel do Abade, assim como a solidez do Príncipe de Gustavo Lassen. Da mesma forma, foi destaque a regência do maestro Flávio Lago, assistente de Luiz Malheiro na direção musical do espetáculo. A tensão na entrada de Adriana ou em Ecco il monologo; o lirismo do dueto entre tenor e soprano no primeiro ato; a ênfase cambiante da recapitulação do tema da personagem principal; a variação de coloridos no quarto ato: há muitos momentos especiais na leitura de Lago para a partitura mas, em geral, o que impressiona é a familiaridade estilística com um compositor pouco conhecido e interpretado.

A presença de jovens artistas não é uma novidade na temporada do Theatro São Pedro. Mais do que isso: tem sido uma marca declarada da gestão de Malheiro como diretor artístico. Uma de suas primeiras atitudes, em 2014, foi incrementar as atividades da academia do teatro, fazendo com que seus integrantes não apenas ocupem papeis pequenos em montagens, mas sejam a espinha dorsal de recitais de canções e de trechos de óperas, além da atuação em uma bem-vinda série dedicada à música de câmara brasileira. Desde então, nos programas do teatro, ficamos acostumados a ver, ao lado dos nomes do elenco, asteriscos cuja legenda nos informa: "Membro da Academia de Ópera do Theatro São Pedro". No programa da Adriana, no entanto, somou-se à lista um asterisco duplo: "Elenco estável do Theatro São Pedro 2016".

No mundo da ópera, um elenco ou companhia estável sugere a presença de um grupo fixo de cantores contratados por um teatro, em cujas produções se revezam de forma regular, dando cara à programação, ao lado dos artistas convidados que participam pontualmente de montagens. A "estabilidade" é, nesse contexto, artística e contratual. A ideia surgiu de uma constatação do maestro Luiz Fernando Malheiro ao refletir sobre a atividade da academia do São Pedro, sobre a qual falou no final do ano passado para a Revista CONCERTO: ao fim de cada ano, um grupo de cantores deixa a academia; saem dela, espera-se, melhores do que entraram; mas trabalharão onde, em um contexto nacional ainda marcado por poucas montagens? A solução foi, ainda segundo o maestro, manter os cantores perto do teatro, atuando nas temporadas seguintes. Para isso, informa o São Pedro, recebem uma ajuda de custo de R$ 2.200 por mês. Não é muito, mas, ainda assim, um passo considerável e significativo de um contexto relativamente recente, algo real em um mundo de discursos desconexos da realidade.

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Nos últimos anos, tem havido um investimento sistemático na formação dos cantores no Brasil. Ele ocorreu no âmbito institucional, ou seja, no contexto do trabalho dos principais teatros públicos brasileiros: a criação da Academia do Theatro São Pedro, da Opera Studio da Escola Municipal de Música, pertencente à Fundação Theatro Municipal de São Paulo, e da Academia Bidu Sayão, do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Seus membros recebem, além de orientação artística de qualidade, a chance de participar do dia a dia de uma casa de ópera, de ter contato com grandes artistas convidados e de se apresentar: no Rio, por exemplo, os alunos ganharam uma série de óperas de câmara na qual vão se submeter a um repertório bastante variado (o primeiro espetáculo acontece em maio, com a ópera Serse, de Händel.

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O aparecimento desses projetos preenche uma lacuna histórica, ao mesmo tempo em que responde a uma realidade recente: há cada vez mais cantores se formando em todo o Brasil, com um interesse renovado não apenas na ópera mas também em outras facetas do canto, abertos à nova música e ao repertório de canções. Mas, enquanto refinam suas metodologias, encontram novos formatos e propostas, esses projetos trazem de volta uma questão também antiga: a abertura de mercados para a ópera brasileira e seus profissionais. Ou, como colocou recentemente André Cardoso, diretor artístico do Municipal do Rio, no seminário realizado pelo Instituto Pensarte a respeito dos desafios da ópera brasileira: formamos cantores para cantar onde? (E aqui, um parêntese: o que falo pouco tem a ver com a discussão a respeito da oposição entre cantores brasileiros ou estrangeiros. Cantores brasileiros devem ter espaço nas temporadas? É óbvio. Cantores estrangeiros devem ter espaço nas temporadas? É óbvio. Seja como for, com a quantidade de óperas que se produz hoje no Brasil, nossas temporadas seriam pequenas de qualquer forma para abrigar um número de fato expressivo de artistas.)

Enfim: formamos cantores para cantar onde? Essa é uma das perguntas que cabem em outra mais ampla, que fiz há duas semanas em um artigo que escrevi para o caderno Aliás, do Estadão: para que serve a ópera? Qual o sentido de um teatro de ópera? Sempre me surpreende a reação raivosa a questionamentos como esses. Perguntar qual o sentido de alguma coisa, afinal, não é o mesmo que dizer que ela não tem sentido. Tal leitura, na verdade, soa como forma de evitar o questionamento que, me parece, é inerente a toda atividade artística. Ainda mais em um mundo de transformações rápidas como o nosso. Ainda mais em uma atividade que movimenta milhões de reais públicos. Ainda mais em uma atividade que tem enfrentado dificuldades das mais diversas para sobreviver. E se a ópera brasileira precisa dessa reflexão, nela deve entrar a questão da ampliação do mercado.

Qual o papel que um grande teatro (os Municipais de São Paulo e Rio, o Theatro São Pedro, o Theatro da Paz, o Theatro Amazonas, o Palácio das Artes e o Theatro São Pedro, ou seja, os teatros que produzem, em maior ou menor quantidade, mas de forma regular) pode ter nesse processo? Produzir bem e mais, com certeza. Mas, por concentrar toda a verba pública que se investe no gênero no país, talvez possa fazer mais, mesmo que de forma meramente institucional, como parceiro ou como espaço de troca de experiências com profissionais que se interessem pelo setor e possam multiplicá-lo país afora. Ou ainda assumindo uma ideia de representatividade para o setor, que daria a ele ferramentas para reivindicar novas políticas públicas. Circulação, itinerância, parceria com teatros de interior, exploração de novos formatos e, nesse contexto, investimento em óperas de câmara, levando em conta uma possível diversificação de repertório (e de gosto). Pensar em ideias como essa é pensar além dos muros das convicções arraigadas sobre o que a ópera deve ser e o papel que pode ocupar na nossa vida cultural (ou ainda achamos que parte do seu fascínio se deve a essa prejudicial aura de exclusividade). E, do ponto de vista prático, pode ajudar a criar um círculo virtuoso de mais produções, mais oportunidades para artistas e mais público, que com certeza trará, no médio e no longo prazo, dividendos interessantes também para os grandes teatros.

Opinião por João Luiz Sampaio

É jornalista e crítico musical, autor de "Ópera à Brasileira", "Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção" e "Guiomar Novas do Brasil", entre outros livros; foi editor - assistente dos suplementos "Cultura" e "Sabático" e do "Caderno 2"

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