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Palco, plateia e coxia

Caverna.club: Mundo que derrete

Não à toa sua cabeça foi colocada a prêmio há anos pelos muçulmanos radicais, Salman Rushdie também está jurado pelo próprio mercado editorial

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Por João Wady Cury
Atualização:

Salman Rushdie continua aprontando das suas. Não à toa sua cabeça foi colocada a prêmio há anos pelos muçulmanos radicais. Agora também está jurado pelo próprio mercado editorial. O fato de ter decidido publicar seu próximo romance na plataforma Substack foi um trompaço daqueles. Em vez de lançar sua história no formato de livro como sempre fez e com tudo o que tem direito, optou pelo meio digital. E mais: fatiado em partes, tal qual um Chico Picadinho da literatura.

O escritor indiano-britânico Salman Rushdie na Flip em 2010 Foto: Tasso Marcelo/Estadão

Acompanho a aventura. Rushdie parece estar se divertindo (salmanrushdie.substack.com). Não é pouco. Certamente sua decisão já aponta em alta velocidade para o caminho inevitável do mercado editorial em um futuro próximo, em nome da melhor remuneração para a estrela principal do baile, quem escreve, e a democratização das publicações.  Impressões sob demanda, a um custo menor e com tiragens reduzidas a 200 ou 300 exemplares, mas sem perder a qualidade de acabamento, e autopublicação no meio digital tornaram-se praticamente regras para uma maioria de escritoras e escritores que não tinham acesso às casas editoriais mais tradicionais, velhas senhoras cheias de pompa e circunstância. Sites como Substack, Ghost, WordPress, além da própria Amazon, cumprem a função.  É possível que você reclame da qualidade do texto de determinado romance, da pobreza do enredo da vida de uma biografada e tudo o mais.  Há gosto para tudo, inclusive para o mau gosto. A discussão aqui é o direito de ser publicado, dar acesso a quem nunca teve – por que não publicar a aventura que você considera heroica de sua avó como agricultora em uma fazenda do interior paulista ou de um tio, médico pobre, que cuidou de uma comunidade no Pari em troca de pão e galinhas?  O processo de democratização do mercado editorial ocorre muitas vezes a contragosto das próprias editoras. Consideram estar perdendo poder. E estão. É exatamente o mesmo processo imposto pela internet quando surgiu, lá se vão 25 anos. Fazer ouvir quem não podia, embora tivesse voz.  A construção pública da história de um povo está intimamente ligada à qualidade das casas editoriais para que as histórias aflorem. Não basta que sejam escritas dezenas de obras sobre a estupidez do atual mandatário do País e sua postura lesiva à vida das pessoas. É preciso inverter o olhar e começarmos a contar como pessoas e instituições sobreviveram e têm sobrevivido a ele, cada uma a seu modo.  Todas essas mudanças são favas contadas, não adianta se debater desesperadamente como baiacu fora d’água. Hoje é Salman Rushdie, amanhã o livro pode ser seu.  É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DO INFANTIL ‘ZIIIM’ E DE ‘ENQUANTO ELES CHORAM, EU VENDO LENÇOS’

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