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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O desafio do casal

'Começou nova fase: seu amigo tem esposa. Você a trata com o máximo de carinho e respeito, afinal, foi a escolha dele. Porém, você e ela possuem pouca intimidade'

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Atualização:

Você tem um amigo muito especial. Ele lhe acompanha há anos. Estudaram juntos. Suas conquistas foram saudadas com genuíno entusiasmo e suas dores, compartilhadas com empatia. São confidentes. Como é da natureza das coisas, ele encontrou uma companheira e se casou. Você foi até padrinho. Que felicidade!

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Começou nova fase: seu amigo tem esposa. Você a trata com o máximo de carinho e respeito, afinal, foi a escolha dele. Porém, você e ela possuem pouca intimidade. Surgiu a necessidade de um desabafo? Não dá mais para fazer como na época de solteiro. Ele tem uma família, não pode ser “alugado” em um sábado à noite para ouvir seu drama. E se, para piorar, a mulher do seu amigo tiver o hábito de ficar sempre junto ao marido? Como resolver o novo patamar que a vida oferece ao afeto entre vocês?

A história se repete. Sua melhor amiga se casou e o marido é chato. Ela escolheu aquele homem. Você não pode e não deve criticar. É um terreno perigoso. Sabe que o discurso negativo pode ser desgastante para a relação de vocês. Não obstante, o cônjuge é, definitivamente, azucrinante. Sim, sua vontade de estar com a pessoa querida é enorme, mas o pacote da amizade ganhou um bônus complexo. Como resolver?

Imagem ilustrativa Foto: Pixabay

Tenho uma pessoa que me contou algo mais no campo do desnível do casal. Seu grande amigo era muito desejado nas festas. Conversa boa, carisma e animação: modelo de bom convidado. Infelizmente, ele se casou com uma mulher insuportável. O que fazer? Perder o bom ou incorporar a ruim? O grupo da minha amiga tomou uma resolução sábia: cada convidado da festa tinha de ficar meia hora conversando com a esposa do simpático. Era obrigatório. Uma espécie de pedágio. “Quer estar na festa? Tem de conversar com ela por meia hora.” Após o período probatório doloroso em que a vítima era metralhada com observações desagradáveis, fazia um sinal de socorro e vinha o substituto ou a substituta. Convencionou-se que meia hora era o possível para um ser humano tolerar aquela pessoa. Enquanto uma vítima era imolada no altar do bem comum, os outros se divertiam e riam com intensidade. O sistema sofisticou-se com listas prévias e até concessões subjetivas: “Hoje eu estou bem, posso ficar 45 minutos” ou “Pelo amor de Deus, o mês está difícil, hoje só tolero 20 minutos”. Todos compreendiam que havia dias em que o prazo de meia hora era excessivo ou em que se poderia oferecer um “chorinho”. Notava-se, inclusive, que, liberto daquele “ordálio” (provação medieval extrema vista como sinal divino), todo convidado acabava ficando mais feliz depois e as festas ganharam um ânimo extra. E a chata? Voltava mais alegre a sua casa, tendo conversado com quase todos do evento e despejado sua personalidade desagradável de forma democrática sobre o grupo. Ressalto para minha querida leitora e para meu caro leitor: a história é real. 

Os casos variam. Citando pessoas que conheço, posso indicar tipologias variadas: ela é ótima, ele bebe demais e dá vexame; ele é agradabilíssimo, ela quer ir embora cedo e fica insistindo nisso; ele é positivo ao extremo, ela é um chá de boldo forte... Não sei na sua experiência – na minha, é raro um casal com mesmo padrão de qualidades sociais. 

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Se já existe o desafio quando você encara um casal, imagine com novos modelos como “trisal” ou “poliamor”. As formas em si são válidas, claro, todavia aumentam a matemática do caos. E se seu amigo estiver com duas pessoas? Há, claro, a hipótese de duas pessoas agradáveis mais o seu amigo. Lembremo-nos, não obstante, do princípio universal conhecido como lei de Murphy: “Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais, dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível”. Já imaginou se o seu amigo ou amiga chegar com duas pessoas insuportáveis? Isso complica a solução descrita um pouco antes de convidados voluntários para o martírio em nome da fé no grupo. 

E o casal fascinante em dupla? Tarsila do Amaral conheceu Oswald de Andrade e brotou um amor intenso. Ele? Genial, escritor, bem-humorado. Ela? Brilhante, pintora de primeira grandeza, culta e agradável. Ambos aristocratas elegantes e com conversas que eram o centro das atenções. Chegaram a criar um nome para o casal: TarsiWald. Foi uma dupla de encanto homogêneo, pelo menos até Oswald ter uma aproximação com outra mulher brilhante: Patrícia Rehder Galvão, conhecida como Pagu. Bem, ainda temos tal desafio: o casal interessante pode terminar o casamento. 

A pergunta já deve ter lhe ocorrido. Como aquela sua amiga tão bacana, tão agradável e tão positiva foi namorar/casar com um tipo tão insuportável? De que forma seu amigo que teve tantas pretendentes legais foi ficar, justamente, com a mulher mais chata? Escolhas afetivas são difíceis de ser ponderadas por testemunhas externas.

Não tenho uma solução perfeita para o problema que denominarei de “desnível do casal”. Um dos dois será, sempre, mais agradável, carismático ou de fácil convívio. Aceitar? Esperar o fim? Selecionar alguém para distrair a parte problemática? Bem, a pandemia tinha suspendido o problema. E agora? Boa semana de sociabilidades. É preciso ter esperança, bons amigos e boas escolhas. 

*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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