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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Os ombros suportam o mundo

É tranquilizador tirar dos ombros o mundo. A esperança da vida é sempre ela em si, nunca o futuro

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Atualização:

Carlos Drummond de Andrade refletiu muito sobre a maturidade. Em 1940, com apenas 38 anos, criou o poema Os Ombros Suportam o Mundo. Como quase sempre, sua temática é a relação do eu com o universo ao redor.

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O mundo de 1940 estava em guerra. O otimismo era um desafio em meio ao avanço do Eixo. A chance da vitória nazista existia. Quando o futuro fica nublado, costumamos reforçar o momento presente, aquilo que chamamos de imanência. As coisas imanentes possuem sentido em si mesmas, seu princípio e seu fim, sem pretensão de transcendência.

Na maioria das vezes, a maturidade reforça o aqui e o agora. O mundo está caindo? Ele afirma: “As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios/provam apenas que a vida prossegue/e nem todos se libertaram ainda./Alguns, achando bárbaro o espetáculo/prefeririam (os delicados) morrer”. Não é alienação a proposta, mas a consciência do fato de a vida seguir em meio ao caos. A maturidade é a consciência de certa impotência diante do desenrolar do grande drama cósmico.

Imagem do desembarque da operação Overlord, que começou no dia 6 de junho de 1944 e ficou conhecido como o Dia D. A foto registra um momento importante da história, que mudou o rumo da Guerra. Foto: Robert F. Sargent

Melancólico, o autor oscila para a ideia da morte. Acaba registrando no poema “Chegou um tempo em que não adianta morrer./ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem./ A vida apenas, sem mistificação”. A morte é uma solução que o mineiro de Itabira abandona. Querer morrer é dar certo relevo à minha presença.

O sentimento de encontrar sentido pleno naquele instante, sem pensar muito além, está no poema Tabacaria de Fernando Pessoa: “Come chocolates, pequena;/ Come chocolates! / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates./ Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria./ Come, pequena suja, come!/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!”

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Sim, qualquer ser minimamente psicanalisado sabe que o chocolate não resolve o problema. O drama de envelhecer é: sabemos que a salada também não resolve. Comer chuchus, caminhar muito e tomar água... uma bela estratégia para a corrida da vida. No entanto, quando a linha de chegada está logo adiante, o impacto do planejamento diminui.

No fim de 2010, com minha mãe caminhando rapidamente para o final, estávamos no café da manhã de um hotel. Chegou bacon frito e crocante. Ela resistiu. Alegou colesterol. Depois, pensou um pouco e comeu com prazer: “Não fará diferença!” É tranquilizador quando tiramos dos ombros o mundo. A esperança da vida é sempre ela em si, nunca o futuro. Aquele foi o melhor bacon que ela comeu na vida, sem peso nos ombros.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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