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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Sessenta anos daquela terça-feira

Revolução de 1964? Golpe militar? As classificações indicam mais quem analisa do que os fatos

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Na faculdade de História, na Unisinos-RS, a professora Beatriz Franzen discutia conosco se o movimento de 1383/85, a chamada Revolução de Avis, em Portugal, teria sido uma ruptura política, uma transformação social ou se, nem sequer, merecia o nome de revolução. Bem, começo por aqui para lembrar que, mais de seiscentos anos depois, ainda existe debate sobre um fato medieval lusitano.

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No ano de 2024, teremos de lembrar os sessenta anos do que ocorreu em 1964. Muito mais recente, tingido por polarizações da época e atuais, o debate incendeia-se ainda mais do que o movimento que levou d. João I ao poder.

Revolução de 1964? Golpe militar? Golpe civil-militar? A “Redentora”? As classificações indicam mais quem analisa do que os fatos a partir de 31 de março. Seria possível uma objetividade maior?

Em primeiro lugar, vamos ao comum. A pressão das tropas e dos seus oficiais sempre foi decisiva no passado. A abdicação de d. Pedro I, o duque de Caxias como primeiro-ministro no Segundo Reinado, a proclamação da República, a deposição de Washington Luiz por uma junta militar, o golpe do Estado Novo, a deposição de Getúlio Vargas em 1945, a crise de 1954/55: esses são alguns exemplos das muitas interferências das Forças Armadas, notavelmente o Exército, na vida política brasileira. Assim, 1964 não é um fato excepcional. A novidade da deposição de João Goulart é que, pela primeira vez, os militares fizeram uma interferência declarada e ficaram no poder durante 21 anos. Isso é novo e não foi unânime para as elites castrenses. Provavelmente, se Castello Branco tivesse mais poder, teria sido o último general-presidente. Outros, como Costa e Silva, imaginaram uma interferência mais prolongada. Não houve unanimidade entre os generais nem em 1964, porque as tropas de Juiz de Fora, deslocando-se para o Rio, não foram uma decisão consensual. O general Olímpio Mourão Filho contava com apoio de muitos mineiros e de outros comandantes, mas ele criou um fato que acelerou um processo. E, mesmo entre os que apoiavam Mourão Filho, como o governador Magalhães Pinto e o ex-ministro da Guerra (Odílio Denys), existia a ideia de que uma ação concreta iria ocorrer apenas a partir de abril daquele ano.

A novidade da deposição de Jango é que, pela primeira vez, os militares fizeram uma interferência declarada e ficaram no poder por 21 anos  Foto: Fábio Motta/Estadão

Derrubar João Goulart, em função das suas alianças sindicais e com movimentos de esquerda, era algo amplamente debatido. O comício de 13 de março e a presença do presidente no Automóvel Clube, em 30 de março, tinham definido um consenso maior por tocarem em dois grandes temas das Forças Armadas: a quebra de hierarquia/disciplina e o chamado “risco do comunismo”.

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As raízes de 1964 podem ser datadas do tenentismo. O Exército como tutor da Nação, a partir da década de 1920, é um fator importante. Os tenentes da República Velha, muitas vezes, eram generais em 1964. A Intentona Comunista de 1935 era um fantasma grande na memória militar, ao menos muito maior do que a Integralista de 1938.

As origens também podem ser buscadas na crise após o suicídio de Vargas, em 1954. O golpe não ocorreu, em parte, porque não havia a unidade nos quartéis e pela ação decisiva do marechal Lott. A crise voltou com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e foi parcialmente detida, de novo, pela falta de unidade e pela reação da Campanha da Legalidade. O que ocorreu em 1964 estava amadurecendo há, pelo menos, uma década.

Outra questão importante de 1964: a Guerra Fria existia. A Revolução Cubana e a Crise dos Mísseis tinham deixado claro que o choque se ampliava para a área de interesse direto dos EUA. Muitos militares estudaram na Escola das Américas, no Panamá, e estavam marcados pela Doutrina de Segurança Nacional. As ideias não eram apenas dos oficiais brasileiros. Devemos lembrar que Hugo Banzer, da Bolívia, e o general Galtieri, da Argentina, foram alunos egressos do centro panamenho. Eles tiveram papel relevante em golpes nos seus países.

Havia Guerra Fria. O Muro de Berlim tinha acabado de ser construído; por isso, qualquer análise deve levar em conta o momento distinto. A URSS financiava revoluções pelo mundo; os EUA financiavam o lado oposto. Éramos sensíveis a influências externas de direita e de esquerda.

Pensar 1964 implica parar de adjetivar e mostrar fígado apenas. Um primeiro passo seria ler os volumes de Elio Gaspari sobre o período militar. Os cinco livros constituem um bom começo. Depois, podem acrescentar-se outras visões, como a do brasilianista norte-americano Thomas Skidmore e a do uruguaio René Dreifuss. Há depoimentos pessoais ligados à esquerda, como Frei Betto, e à direita, como Marco Polo Giordani. Nenhum autor deve ser lido sem que seja identificado seu lugar de fala e sua visão de mundo. A mesma personagem histórica, Carlos Marighella, é tratada como herói romântico ou monstro sanguinário em obras de visões distintas. Isso vale também para você analisar as reações que ocorrerão a este texto: elas falam muito do leitor, mas pouco do que retratei aqui.

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Sobre 1964, eu tenho uma certeza insofismável: a opinião não deve ser buscada em grupo de Zap ou no TikTok. Tenho esperança em gente que forme senso crítico a partir de livros, todavia não apenas por redes sociais. Importante: o depoimento de vovô fala de vovô apenas...

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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