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De negociador da dívida externa brasileira a um dos grandes tradutores: Conheça Jorio Dauster

Ex-diplomata de 85 anos é hoje um dos principais tradutores literários da língua inglesa do País; ele verteu obras de autores como Nabokov, Salinger, Roth e McEwan

Por Guilherme Evelin
Atualização:

“Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama. Lo-li-ta: a ponta da língua descendo em três saltos pelo céu da boca para tropeçar de leve, no terceiro, contra os dentes. Lo. Li. Ta ‘’.

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O parágrafo inicial de Lolita, de Vladimir Nabokov, na tradução publicada no Brasil em 1994, começa com essa descrição antológica. No original de Nabokov, russo que escrevia em inglês, Humbert Humbert, o pedófilo quarentão, recorre a uma aliteração - “my sin, my soul” - para recordar-se, na prisão, de Lolita, a menina de 12 anos por quem se apaixonara ao ponto da perdição. Uma tradução literal “meu pecado, minha alma” perderia a figura de linguagem e a força da repetição dos dois monossílabos sussurrantes da abertura original de Nabokov. “Minha alma, minha lama” é uma solução inventiva que preserva no português, com uma musicalidade rodrigueana, a sonoridade do jogo de palavras em inglês.

O responsável pelo “achado”, o ex-embaixador Jorio Dauster se define como um “tradutor diletante”, mas viu seu nome estampar a capa da edição de Lolita feita pela Companhia das Letras – honraria raramente concedida a um tradutor no Brasil. Dauster se tornou também um dos principais tradutores literários de língua inglesa do Brasil, com mais de 80 romances, contos e ensaios vertidos para o português, de autores como Philip Roth, Ian McEwan, Salman Rushdie e Virginia Woolf – além de Nakobov, de quem traduziu 16 obras.

Jorio Dauster, aos 85 anos, em sua casa em Brasília com 'Lolita', que ele traduziu Foto: Wilton Junior/Estadão

Aos 85 anos, Dauster aparenta idade bem mais jovem, é enérgico, dirige o próprio carro e está produtivo como nunca como tradutor. É de sua lavra a versão de Encruzilhadas, o recém-lançado romance do americano Jonathan Frenzen, primeiro da trilogia intitulada Uma chave para todas as mitologias.

Ele está traduzindo também Monstros fabulosos, coleção de minicontos sobre os heróis da infância do argentino Alberto Manguel (discípulo de Jorge Luis Borges que escreve em inglês), entre os quais figuram Dona Benta e Macunaíma.

Diplomata, tradutor e conselheiro de empresas

Quando verteu Lolita para o português, Dauster conciliava a tradução de Nabokov com a carreira de diplomata. A profissão o levou a funções como chefe da missão do Brasil junto à União Europeia e negociador da dívida externa brasileira, durante o governo Fernando Collor.

Ele também foi executivo de empresas e, entre 1999 e 2001, foi o primeiro presidente da Vale, depois de a companhia ter sido privatizada. Aposentado do Itamaraty e ocupando atualmente apenas funções de conselheiro de empresas (é presidente do conselho de administração da Taurus, a fabricante de armas), Dauster vive hoje em Brasília com mais tempo livre para se dedicar à tradução, atividade que constituiu a “salvação da sua vida” durante a reclusão da pandemia, segundo diz. “É minha nave espacial, uma forma de ativar as ondas alfa mais eficaz que a meditação e um aparelho de ginástica mental que combate a senilidade em todas as suas formas”, disse ele, numa entrevista publicada em livro em 2022.

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O “vírus da tradução”, diz Dauster, o “infectou mortalmente” na década de 1960 – quando fez sua primeira versão, de O Apanhador no Campo de Centeio, de J.D. Salinger. Em 1957, aos 19 anos, durante uma temporada nos EUA, ele leu o livro, clássico de várias gerações por retratar as angústias de um adolescente à beira da entrada na vida adulta. Depois de entrar no Itamaraty, ele resolveu traduzir a obra junto com mais dois colegas diplomatas, Álvaro Alencar e Antonio Rocha.

Depois do golpe militar de 1964, como um irmão era militante de um grupo de esquerda, Dauster foi considerado “subversivo” e afastado do trabalho. Trancado por seis meses num apartamento quarto e sala, no Rio de Janeiro, ele se dedicou então a rever e a harmonizar a tradução a seis mãos do texto de Salinger- um depoimento de um jovem de 17 anos em linguagem direta e coloquial. Publicada, pela primeira vez, em 1965 pela Editora do Autor (do cronista Rubem Braga), a versão de Apanhador, que preservava a oralidade do texto original, virou referência e tornou o nome de Dauster conhecido como tradutor.

Relação com os livros

Carioca, filho de um médico e uma professora de filosofia, Dauster conviveu desde cedo em casa com os livros. Como adolescente, leu autores como Balzac e Dostoiévski. Bem humorado, ele diz que logo percebeu, porém, que nunca poderia dizer, à maneira de Castro Alves, que sentia em si “o borbulhar de um gênio”. Por isso, em vez de tentar enveredar pela ficção literária e ser um “escritor medíocre”, preferiu seguir pelo caminho da tradução dos autores que o empolgavam - uma forma, segundo ele, de exercer a vocação pelas letras.

O exemplo paterno, de alguma forma, o inspirou. Apesar de monoglota, o pai de Jorio ganhou alguns trocados, com a ajuda de dicionários, fazendo traduções de textos em francês e espanhol para uma antiga referência do mundo editorial: a Livraria do Globo, de Porto Alegre. “Às vezes, eu ficava atrás dele enquanto batucava numa Remington enorme”, lembra-se o embaixador.

Método de tradução

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Nos tempos atuais, o método de trabalho de Jorio consiste em jogar no computador o texto original – ele vai traduzindo o texto enquanto o lê, deletando os trechos que já verteu para o português. Ele não costuma ler previamente os romances. Vai descobrindo a trama à medida que a traduz, “percorrendo os meandros da história com a curiosidade do leitor comum”.

Também não consulta as versões anteriores de obras que lhe pedem para retraduzir nem as traduções para outras línguas. “Prefiro sentir o sabor original da fruta ao mordê-la”, afirma.

Não tem o hábito de procurar novas versões de textos antes traduzidos por ele, a não ser que lhe cheguem às mãos, e diz que nunca sentiu a necessidade de consultar um autor sobre trechos que traduziu. Já fez, porém, sugestões de mudanças de títulos de obras. Salinger vetou a mudança de O Apanhador no Campo de Centeio para A Sentinela do Abismo, proposto por ele. Mas Ian McEwan topou que seu romance The Children Act (que numa tradução literal poderia ser chamado de Estatuto de menores) ganhasse no Brasil, por sugestão de Dauster, um título bem mais lírico: A balada de Adam Henry.

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Dauster diz que vê a arte da tradução com o mesmo espírito lúdico de quem tenta montar um jogo de quebra-cabeça. Ele procura ser o mais fiel possível ao original, mas tenta traduzir de modo a que o leitor tenha a sensação de que tem diante de si um texto escrito recentemente em português.

O tradutor Jorio Dauster verteu para o português obras de autores como Ian McEwan, J.D. Salinger e muitos outros Foto: Wilton Junior/Estadão

“Fidelidade não significa literalidade, e o tradutor precisa adaptar o texto original ouvindo as palavras que põe no papel para saber se elas correspondem ao vernáculo do seu tempo”, diz. Expressões idiomáticas, trocadilhos e jogos de palavras, acrescenta, precisam ser transpostos para o português na forma de algum equivalente que corresponda à vontade do autor.

Cada escritor impõe um desafio diferente. Autor bissexto de sambas, canções e marchinhas de carnaval, Dauster diz que o tradutor literário deve ter a mesma versatilidade de um instrumentista capaz de transitar de uma roda de choro para um concerto de música clássica. Com esse espírito, já encarou desde os textos escrachados, repletos de palavrões, de James Baldwin até as obras carregadas de barroquismos de Scott Fitzgerald.

Para Dauster, Ian McEwan, pelo texto fuido e leve, é o maior romancista vivo de língua inglesa. Mas ele não esconde a predileção e devoção pelo seu amado Nakobov, que não colocava nenhuma palavra no papel por acaso e é comparado por ele a um ourives linguístico.

Em 1985, junto com um colega diplomata, Sergio Duarte, empreendeu a saga de traduzir para o português Fogo Pálido, o mais complexo romance de Nabokov, em que um narrador delirante faz comentários sobre um poema de 999 versos em decassílabos rimados.

Dauster conta com orgulho que uma de suas glórias como tradutor foi ter sido reconhecido, certa ocasião, na fila de táxis do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, por um cidadão de sotaque luso que lhe disse: “Prefiro sua tradução de Lolita à que temos em Portugal”.

Crítico cáustico da onda “politicamente correta”, Dauster agora está na torcida para que não chegue ao Brasil o movimento, defendido em alguns países por facções feministas mais radicais, de banimento do romance de Nabokov, uma das obras-primas da literatura mundial do século 20.

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