Gay Talese: ‘A imprensa americana está tendo de ser mais respeitosa com Trump’

Prestes a completar 93 anos, lendário jornalista fala sobre os desafios de seu ofício e os planos de lançar, em 2027, um livro sobre seu casamento

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Foto do author Luciana Dyniewicz
Atualização:
Foto: Dimitrios Kambouris/Getty Imagens/AFP
Entrevista comGay TaleseJornalista e escritor

Um dos maiores jornalistas da sua geração, Gay Talese vê a imprensa americana mais dócil ao tratar do presidente Donald Trump. Crítico do trabalho dos veículos de comunicação dos Estados Unidos, o escritor afirma que não há como a imprensa ir contra ao fato de que os americanos elegeram Trump – a quem já chamou, em outras ocasiões, de “louco” e “grosseiro”.

“A maioria da imprensa dos EUA não gosta de Trump, e isso se reflete em como as matérias são escritas, como são editadas, quais fotos acompanham os artigos publicados e nas manchetes. Ainda assim, Trump gera notícias. Ele vende jornais e tempo de televisão. Assim, a imprensa que o odeia também o ama”, diz Talese, que, em 2020, declarou que havia apoiado Bernie Sanders.

Prestes a completar 93 anos no próximo dia 7, Talese mantém sua rotina de jornalista e os planos de publicar em 2027 um livro sobre o seu casamento, algo sobre o que fala há pelo menos 15 anos. Continua não usando gravadores em suas entrevistas e fazendo anotações em uma espécie de papel-cartão recortado. Guarda esses famosos cartões no bolso interno de seus elegantes paletós. O que ele mudou nos últimos anos foi passar a ter – e responder – e-mail, o que dizia não fazer até 2012.

Foi por e-mail que o convidei, em meados de setembro, para um café. Estava viajando pelos Estados Unidos com outros nove jornalistas de diferentes países como parte de uma bolsa concedida pelo World Press Institute e achei que uma conversa com ele seria interessante para nós. Sabia que Talese não costuma negar conversas por considerar que muitas pessoas já deram seu tempo a ele concedendo entrevistas. Precisa agora, portanto, fazer o mesmo.

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O escritor se desculpou. Disse lamentar não poder me encontrar, porque faria uma cirurgia na garganta. “Minhas cordas vocais não estão funcionando”, escreveu. Insisti, então, para voltarmos a falar mais para frente, quando ele tivesse se recuperado. Mas teria de ser por telefone ou alguma plataforma de vídeo, dado que eu não estaria mais nos EUA.

Em janeiro, voltei a escrever. Talese afirmou que poderia me ver por uma hora em alguma tarde, por volta das 16h30. Eu deveria lhe dar duas opções de data e ele escolheria uma. Me deu uma bronca por enviar e-mails com letras muito pequenas (”talvez 8 pontos, ou menor”), que ele mal conseguia ler.

Expliquei que não estava mais no país. Ele então concordou em dar uma entrevista por e-mail, pois não tem “habilidade suficiente para usar o Zoom” e uma conversa por telefone seria difícil porque sua “voz (aos 93 anos) não é forte”. “Talvez você possa me enviar dez perguntas por e-mail – espero que seis ou sete –, e eu te darei respostas completas”, escreveu Talese.

Confira, a seguir, as respostas enviadas em pouco menos de 24 horas após as perguntas chegarem a ele. Apesar do rápido retorno, o jornalista pediu para que eu não mandasse novas questões e explicou que era difícil, para ele, digitar com “suas mãos de 93 anos” que não “não são mais muito ágeis”.

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Ao longo de sua carreira, o senhor contou histórias de Nova York, e seu livro mais recente, ‘A Town Without Time’, é uma coletânea de seus relatos sobre a cidade. Recentemente, o senhor disse que não conseguia se lembrar de um dia infeliz em Nova York. O que a torna tão especial para o senhor?

Nova York é “especial” porque é a cidade mais internacional dos Estados Unidos. Se você estiver em um vagão de metrô, pode ouvir quatro ou cinco idiomas diferentes. Também é a cidade mais sofisticada dos EUA; nada parece surpreender ou chocar seus cidadãos. Eles conseguem lidar com todos os tipos de problemas e são rápidos em ajudar qualquer pessoa que caia na rua, seja por motivo de saúde ou por ter sido atacada por um criminoso. É uma cidade de grande coração. Na verdade, apesar de sua grandiosidade, também tem uma mentalidade de “cidade pequena”. Moro em uma rua movimentada, mas a mentalidade de cidade pequena prevalece. Conheço pelo nome as pessoas que trabalham na farmácia da esquina, na lavanderia, na loja de ferragens, na sapataria. Eles também me conhecem. Em uma cidade com milhões de habitantes, sinto que faço parte dela, mas, ao mesmo tempo, sou singularmente eu mesmo.

Ainda janta em restaurantes quatro a cinco vezes por semana? Quais recomendaria?

Por causa da minha idade e dificuldade para caminhar, frequento restaurantes no meu bairro, no Upper East Side de Manhattan: o Donohue’s Irish Steak House na Lexington com a 64th, o italiano Isle of Capri na Third Avenue com a 61st Street, e o francês La Goulue, na 61st perto da Park Avenue.

O senhor ainda mantém sua rotina de escritor: continua fazendo anotações sobre as pessoas em cartões que vêm nas camisas, escrevendo diariamente e trabalhando em mais de um projeto ao mesmo tempo? Quais projetos está trabalhando atualmente?

Eu trabalho como sempre: faço anotações em cartões de camisa, compareço pessoalmente às entrevistas, evito telefones, chamadas por Zoom e gravações. Quero olhar nos rostos das pessoas sobre as quais estou escrevendo. Observo seus gestos, o que estão vestindo, como andam e reagem ao que veem e ouvem ao redor, etc. Retomei o trabalho de um livro chamado A Non-fiction Marriage (Um Casamento Não Ficcional). É um estudo de 60 anos sobre meu único e duradouro casamento com a editora Nan Talese. Mais sobre isso após eu terminá-lo, em 2027.

No anos 2000, durante a Guerra do Iraque e em um período em que o ‘New York Times’ cometeu uma série de erros – como os casos Jason Blair e Judith Miller –, o senhor costumava dizer que a imprensa americana era pouco crítica. Já no primeiro governo Trump, disse que a imprensa odiava o presidente. Como o senhor avalia o trabalho dela hoje? Ela cumpre seu papel de vigiar o poder e ser crítica?

A imprensa hoje tem mais viés do que quando eu era um repórter de rua em meados do século 20. Na minha época, nós, repórteres, tentávamos ser “objetivos”, tentávamos manter nossas preferências e aversões fora das matérias que estávamos escrevendo. Mas agora – e na última década – a maioria da imprensa dos EUA não gosta de Trump, e isso se reflete em como as matérias são escritas, como são editadas, quais fotos acompanham os artigos publicados e nas manchetes que aparecem. Ainda assim, Trump gera notícias. Ele vende jornais e tempo de televisão. Assim, a imprensa que o odeia também o ama. Ele ajuda a pagar os salários deles.

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Gay Talese em 2009, durante sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) Foto: Marcos de Paula/Estadão

Como avalia a cobertura que a imprensa americana fez do primeiro governo Trump? O que acha que precisa mudar para esse segundo mandato?

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A imprensa foi muito anti-Trump durante seu primeiro mandato e nos anos seguintes, no governo de Joe Biden. Agora que Trump obteve uma grande vitória, ela está amenizando seus ataques contra ele porque, francamente, eles devem respeitar o fato de que os cidadãos dos EUA elegeram Trump. A imprensa não pode brigar com esse fato, então eles estão sendo mais respeitosos agora que ele retorna ao Salão Oval.

O senhor parece ter tido uma certa liberdade editorial em suas reportagens. Em um mundo onde alguns meios de comunicação são propriedade de bilionários que não parecem tão afeitos à imprensa, acha que jornalistas terão espaço para produzir as histórias que consideram essenciais?

Acredito que os repórteres têm um trabalho mais difícil hoje do que quando eu trabalhava como jornalista diário. Hoje, o trabalho é muito técnico, movido por computadores, remoto. Eu costumava insistir em estar fisicamente presente com o meu entrevistado e, assim, viajava muito. Mas isso significava dinheiro para viagens, e hoje esse dinheiro não está disponível. Hoje, a entrevista à distância é feita por uma sessão no Zoom ou, quando feita pessoalmente, é gravada, o que é mais rápido e barato do que o que eu costumava fazer. O que eu fazia tomava tempo, exigia mais confiança entre mim e meus entrevistados – o que diferenciava o meu trabalho. Até hoje você sabe como era meu contato com as pessoas sobre as quais escrevia. É por isso que histórias que escrevi há 40 ou 50 anos “resistem” até hoje e sempre parecem frescas e novas. Meu livro mais recente, A Town Without Time, é um exemplo perfeito disso.

Jornais em todo o mundo têm enfrentado dificuldades financeiras, além do desafio de atrair e reter leitores. As reportagens longas, escritas sem que o jornalista se preocupe com o furo ainda são atraentes? Como elas podem competir com as redes sociais pela atenção do leitor?

Acredito que “qualidade” vende. Se você criar um par de sapatos caros e bonitos, eles vão vender. Da mesma forma, uma peça de mobília bonita, um carro, uma casa... ou um artigo bem escrito. Os jovens repórteres precisam se tornar bons escritores, assim como são os escritores e poetas. Se conseguirem isso, encontrarão um público. O público está lá, esperando pelo surgimento de algo digno de ser apreciado, algo extraordinário, algo envolvente e cativante. Boa escrita – se for realmente boa – encontrará leitores.

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O senhor costumava ter uma postura contrária ao uso de tecnologia pelos jornalistas. Hoje, há jornais que usam inteligência artificial para gerar títulos para as matérias, por exemplo. O que acha disso?

Já cobri esses assuntos nas respostas anteriores.

No livro ‘Bartleby and Me’, o senhor menciona que o livro ‘O Voyeur’ desencadeou respostas negativas que lhe pareceram injustas. Até que ponto acredita que o ‘Washington Post’ estava errado nas críticas? Acha que tomou alguma decisão equivocada ao escrever e publicar ‘O Voyeur’?

O ‘Washington Post’ estava errado sobre mim e ‘O Voyeur’. Eu respondi a isso na entrevista do documentário da Netflix.

(O jornal americano encontrou problemas na apuração de Talese, que baseou seu livro no diário de Geral Foos, um dono de um motel que observava, escondido, o que casais faziam nos quartos. Segundo o ‘Washington Post’, parte dos relatos não poderia ser verdade porque foi descrita em uma época em que o motel não era propriedade de Foos. No documentário, Talese afirma que Foos continuou visitando o motel quando já não era mais o dono porque o novo proprietário era seu amigo.)

Uma vez, o senhor mencionou que gostaria de entrevistar e escrever sobre o ator Kevin Spacey, porque ele foi um homem bem-sucedido que agora praticamente tem de se esconder nas ruas. Também disse que achava que o acusador de Spacey deveria ter ficado quieto. Como vê esse episódio agora? Hoje, quem o senhor gostaria de entrevistar ou perfilar?

Quando eu estava em um grande evento na Biblioteca Pública de Nova York, um repórter com um gravador se aproximou e me perguntou o que eu achava sobre o relacionamento de Kevin Spacey com um jovem ator que o acusou de assédio sexual. Eu pensei que o repórter estava se referindo a um único incidente. Respondi que desejava que alguns desses reclamantes simplesmente “aguentassem isso” de vez em quando, que parassem de chorar para o mundo e mantivessem suas queixas privadas, resolvendo suas próprias desventuras sexuais sem transformar tudo em um crime federal, etc... O que eu não sabia na época – nem o repórter teve a cortesia de me informar – era que Spacey havia abusado de vários outros homens... Não apenas esse cara, mas muitos. Se eu soubesse disso, teria sido mais simpático na minha resposta. Mas eu estava desinformado, como eu disse, e então cometi o erro de minimizar os crimes de Spacey. Pelo que paguei mais tarde. Minha palestra agendada em Yale foi cancelada e eu me tornei alvo de muitas cartas, etc, etc.

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