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Mia Couto vem ao Brasil para falar sobre a sua obra

Moçambicano é criador de uma poesia que expressa a 'língua do chão'

Por Mariana Mandelli
Atualização:

Para o moçambicano Mia Couto, a palavra é algo a se inventar. É o que ele ensina aos próprios filhos: que a língua está aí para ser constantemente recriada. Essa perspectiva, de lidar com a palavra como argila, de moldá-la e misturá-la com outras terras, leva o escritor a brincar como um menino, inventando outro léxico para outras maneiras, inusuais, de ver e pensar o mundo.

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Não é novidade que, em seus mais de 30 anos dedicados à literatura até hoje, Mia Couto transite por diferentes gêneros, miscigenando-os. O que talvez nem todos saibam é que a poesia, substrato de criação de sua prosa, é também o gênero em que se deu sua estreia literária, em 1983, com Raiz de Orvalho. Poemas desse e de outros livros – Idades, Cidades, Divindades, de 2007, e Tradutor de Chuvas, de 2011 – são agora selecionados pelo autor para uma primeira coletânea publicada no Brasil, pela Companhia das Letras.

Apesar do caráter especial dessa edição dentro de uma lista farta em romances e contos, o mote do encontro em que Mia estará presente, ao lado de Maria Bethânia, dia 26, na Sala Cecília Meireles, no Rio (em SP, será no dia 28, em uma unidade a confirmar do Sesc, com Julián Fuks e atores convidados), em comemoração aos 30 anos da editora, não será essa reunião de Poemas Escolhidos, mas o lançamento do segundo romance da trilogia As Areias do Imperador. Isso porque sua literatura é internacionalmente famosa por sua prosa de ficção. Que os poemas ocupem outro plano é uma constatação que não os desmerece, apenas expõe a honestidade de uma voz que admite falar “a língua do chão”. Como observa José Castello na apresentação do livro, essa é uma poesia de “escrita rasa, rasteira, sem afetação”. Mais ainda, uma poesia basilar, de sementes que dão em frutos de fábula no terreno contíguo da narrativa do autor.

O escritor. Da poesia, extrai alimento, a narrativa de seus contos e romances Foto: Estadão

O espírito lúdico de uma relação sempre inventiva entre as coisas e as palavras, como a que as crianças têm com a linguagem em seu estágio inaugural no mundo, é próprio da poética de Mia Couto. Vêm daí seus neologismos e trocadilhos sem pudor, que unem a criança e o poeta numa “infância autorizada pelo brilho da palavra”, como já dizia uma de suas crônicas (O Viajante Clandestino). Cúmplice da menina “propícia a equívocos”, que é repreendida na escolinha, no poema Errar, o poeta arrisca suas invenções sem medo da reprovação da crítica. Dentro dessa desobediência linguística, a poesia é o chão onde se planta, e de onde extrai alimento, a narrativa de seus romances e contos.

Enquanto alguns poemas são sementes de histórias, como O Pecado do Rio, O Brinde, Hora de Visita, outros são essencialmente poesia em sua matéria e seus motivos, como Idades, A Lentidão da Sede, Números. Outros ainda ficam na memória por seus versos proverbiais: “Cego é quem só abre os olhos / quando a si mesmo se contempla”; “O amor / não tem depois”; “Um deus amigo / que me chame por tu / (...) / esse é o deus que eu quero ter”.

Além da miscigenação de diferentes gêneros, os livros de Mia Couto também compartilham inspirações: o corpo (a palavra) em comunhão com a terra, a mulher como fonte de saudades e sortilégios, a infância enquanto estado de poesia. Com razão, José Castello aponta o tempo como tema central do escritor. No caso da poesia, “um tempo interior”. Assim, a ideia de uma nação como “casa para sonhar”, que Mia leva para sua prosa ao tratar da história de Moçambique, com seu passado colonialista e sua luta pela independência, em seus poemas se converte no corpo como casa ou cárcere. É o que se tem em Poemas Escolhidos: a palavra como princípio de tudo: de uma árvore, um homem, uma pátria, um mundo.TRECHOS “A vez / que tive mais idade / foi aos cinco anos / Meu pai,... / ...com solenidade que eu desconhecia, / perante seus superiores hierárquicos, / apontou e disse: / - Este é meu filho! / E deu-me a mão / coroando-me rei.” (De A Primeira Vez da Idade) “O meu modo de saber é adoecendo. / A uns, a ideia surge em luz. / A mim, se declara uma pontada no peito. / O advento da dor, / o deflagrar da súbita febre / e eu sei que o meu corpo sabe. / Um dia destes / me desconhecerei vivo desfalecido de aguda sapiência. / Até lá / repartirei com um anjo / o doce milagre da refeição.” (De A Luz da Dor)POEMAS ESCOLHIDOSAutor: Mia CoutoEditora: Companhia das Letras (192 págs.; R$ 39,90; R$ 27,90 o e-book)* MARIANA IANELLI É POETA, AUTORA DE O AMOR E DEPOIS, TEMPO DE VOLTAR, ENTRE OUTRAS OBRAS

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