Prêmio Sesc 2023 escolhe livros sobre relação homoafetiva no garimpo e famílias disfuncionais

Em 2023, os vencedores do Prêmio Sesc de Literatura foram o romance ‘Outro Outono de Carne Estranha’, de Airton Souza, e ‘O Ninho’, de Bethânia Pires Amaro; conheça o enredo e leia trechos

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
Atualização:

O Prêmio Sesc de Literatura 2023 anuncia nesta quarta-feira, 24, seus novos vencedores. Uma das principais premiações literárias do País, responsável por revelar, ao longo de sua história, novos autores, como Rafael Gallo, Luisa Geisler e André de Leones, ele escolheu, este ano, o Airton Souza, na categoria romance, com Outro Outono de Carne Estranha, e a pernambucana Bethânia Pires Amaro em contos, com O Ninho.

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Os dois autores, estreantes nos gêneros em que foram premiados, terão o livro publicado pela Editora Record. Após o lançamento, eles fazem um circuito ao longo de todo um ano, pelas unidades do Sesc, em dezenas de cidades, e participam de outros eventos e feiras.

Criado em 2003, o Prêmio Sesc recebeu, nesta edição, 1.495 inscrições, das quais 770 foram obras originais na categoria romance e 725 em conto. Joca Reiners Terron e Suzana Vargas foram os jurados da primeira categoria e Giovana Madalosso e Sérgio Rodrigues, da segunda.

Outro Outono de Carne Estranha se passa na Serra Pelada dos anos 80 e tem como protagonistas dois garimpeiros em uma relação homoafetiva. O livro retrata as comunidades da região, mostra o poder do Estado na época e o preconceito com relação a quem era diferente.

O professor de história Airton Souza venceu o Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance Foto: Arquivo pessoal/Airton Souza

O Ninho apresenta linha temática ligada à dessacralização da casa como lugar idílico e de proteção, retratado assim nas redes sociais. A autora buscou construir personagens personagens femininas que vivem situações de abusos, desencontros e pressões dentro de quatro paredes.

Quem são os vencedores do Prêmio Sesc 2023

Airton Souza tem 41 anos, nasceu e vive em Marabá (PA). É professor de história para crianças e adolescentes do Ensino Básico e mestre em Letras. Atualmente, ele faz doutorado em Comunicação, Cultura e Amazônia pela UFPA.

Bethânia Pires Amaro tem 34 anos, nasceu em Pernambuco, passou a infância no interior da Bahia e vive há quase uma década em São Paulo. Ela é advogada pública e trabalha na Secretaria Municipal de Educação do Município de São Paulo.

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Bethânia Amaro é advogada e ganhou Prêmio Sesc com seu primeiro livro de contos Foto: Arquivo pessoal/Bethânia Amaro

Outro outono de carne estranha, segundo Airton Souza

O romance narra a saga do garimpo de Serra Pelada, a partir de dentro. A narrativa inicia com o processo de invasão da fazenda onde o garimpo foi descoberto por acaso, e que nos anos seguintes se tornaria o maior garimpo a céu aberto do mundo. Os personagens compõem parte do tecido social que migraram para a região Sudeste do Pará em busca daquilo que se convencionou a chamar “de uma vida melhor”. Dessa forma, o romance toca em pontos cruciais para compreendermos um dos momentos mais complexos que contribuíram para tornar essa parte da Amazônia como espaço de fronteira.

As vozes dos personagens são as dos que foram excluídos da história oficial, do processo canônico de compreensão da Amazônia. Dentro do romance esses personagens são os subalternizados que falam. Outro Outono de Carne Estranha é sem dúvida um romance-denúncia. Seu enredo mistura fé, esperança, amor, desilusão, os modos de violências que até o momento permanecem vivos dentro das Amazônias, e sobretudo, a intervenção do estado.

O enredo principalmente narra a história de um amor homoafetivo entre dois garimpeiros. O que é terminantemente proibido no garimpo. Por isso o romance mescla a realidade e a ficção. É através dessa relação amorosa que vai sendo descortinado parte de tudo aquilo que aconteceu no garimpo de Serra Pelada e também nas vilas e cidades próximas, como Marabá.

Leia um trecho do livro

“Às dez horas da manhã, uma imensa parte do paredão de terra da cava começou a desmoronar. Alvoroçados, alguns garimpeiros correram, aos gritos, em direção aos monturos de terra. Um batepau se desesperou. Sacou o trinta e oito da cintura. Engatilhou. Segurou com as duas mãos. Depois apontou, à meia altura, em direção aos garimpeiros eufóricos. Gritou para se afastarem, enquanto caminhava em direção aos monturos. O paredão de terra não parou de cair. “Ouro, ouro, ouro.” Foi a palavra que ouviram repetidas vezes.

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Manel sentiu uma bala atravessar sua cabeça. Cambaleou. Desorientado, rangeu os dentes. Tentou sustentar o peso do próprio corpo em pé. Não sentiu os calcanhares. Quando dos ouvidos começou a descer um líquido, ele em vão se esforçou para passar os dedos no corpo e ver o que era. O saco de estopa vazio caiu. Com as forças que ainda possuía, jogou os braços para se agarrar a qualquer coisa no ar. À sua frente, enxergou nitidamente os três pés de hibiscos crescidos e floridos, plantados no terreiro de casa. Na sombra de um deles, o seu menino mais velho estava terminando de desenhar uma árvore, uma casa e um sol no chão. O mais novo em pé, olhando, consternado, a solidão da paisagem feita pelo irmão.”

O Ninho, por Bethânia Pires Amaro

Trabalhei neste livro ao longo de dois anos, desde que ingressei no CLIPE (projeto da Casa das Rosas), mas ele foi majoritariamente escrito na Oficina de Criação Literária do professor Luiz Antonio de Assis Brasil, e depois passou pela leitura crítica de Anita Deak e pela análise de projeto por Marcelino Freire. Inicialmente o livro tinha outra proposta, mas na medida em que eu ia escrevendo, percebi que as relações familiares disfuncionais e a maternidade desconstruída permeavam a maior parte de minhas histórias, de modo que decidi reunir estes contos num livro com esse propósito, e sempre mostrando as impressões de personagens femininas, dando voz a essas mulheres.

Essa temática me sensibiliza muito, porque eu acredito que grande parte das nossas dores e cicatrizes derivam do ambiente familiar, e como a família é costumeiramente vista como um porto seguro e envolve uma gama de sentimentos, inclusive de amor e gratidão, eventuais comportamentos tóxicos neste meio acabam sendo silenciados, mesmo porque nas redes sociais as pessoas costumam apresentar a imagem de que vivem uma vida perfeita, numa família perfeita. Deste modo, eu quis trazer à luz as falhas de nossas famílias, desde situações mais corriqueiras como o divórcio dos pais e o antagonismo entre irmãs, até situações mais extremas que envolvem abuso sexual, racismo enraizado e distúrbios alimentares, que muitas vezes frutificam no seio familiar e não são confrontados, justamente pela complexidade dessas relações, e especialmente entre pais e filhos, entre mães e filhas.

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Um outro objetivo do livro é mostrar que comportamentos abusivos e mesmo monstruosos partem de seres humanos, de pessoas que estão ali nos nossos círculos, às vezes muito próximas de nós, que esses abusos, ainda que não tenham acontecido diretamente conosco, nunca estão muito longe de todas nós, mulheres, que somos a grande maioria das vítimas de abusos e violências domésticas dos mais variados tipos.

Leia um trecho do conto ‘Nero’

“Eu soube que a bebê tinha sido deixada pra mim porque eu nunca pegava o caminho até a igreja, mas justo naquele dia eu decidi passar por lá. Estava ouvindo Morena Tropicana em volume máximo, mexendo os quadris como se ainda tivesse dezessete anos, e praticamente tropecei nela no meio da calçada. Naquele instante foi como se eu voltasse a ser adolescente, quando escolhia nomes para as bonecas das meninas mais novas; uma das bonecas tinha os mesmos olhos daquela criança largada diante da igreja, era uma boneca linda, que me fazia pensar que a coisa mais simples do mundo era ter uma filha, escolher um belo nome e dividir com ela o café da manhã, enquanto ela diria “obrigada mamãe” toda vez que eu passasse o leite. Eu tentei explicar a Marília e ela não entendeu. Mas que merda, você pegou uma criança do nada pra criar? E eu respondi que as pessoas faziam coisas piores na vida.

Marília era uma pessoa carregadíssima. Ela vivia cansada, reclamava que trabalhava demais, que pagavam pouco e o aluguel estava atrasado, mas tenho certeza de que ela precisava mesmo era de uma boa limpeza astral. Só que eu falava e Marília suspirava que nem uma atriz de cinema, como se as minhas palavras estivessem acabando com ela. Estávamos juntas há quatro anos, desde que ela me pagou um chope num barzinho decrépito aonde fui somente porque tinham me dito que ali as mulheres tomavam grandes liberdades. Umas poucas horas e Marília enfiou a língua na minha boca, disse que me escolheu pelo gosto doce das pastilhas Valda, que deixaram os lábios dela formigando. Aqueles dois reais foram o melhor investimento da minha vida. Eu a escolhi porque ela era branca, mas não contei, inventei alguma coisa mais sensível. Marília pareceu tão leve naquele dia, descontraída feito uma borboleta, mas agora: quatro anos de aluguel e toda aquela lenga-lenga. Eu tinha por princípio nunca me preocupar com dinheiro. A vida me ensinou que o dinheiro sempre aparecia de alguma forma.”

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