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A jornalista Luciana Garbin traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|Quando as mulheres vão à guerra

Elas há muito tempo vão ao front, mas a história militar é contada do ponto de vista masculino

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Atualização:

A morte da brasileira Thalita do Valle na guerra da Ucrânia me fez lembrar dos relatos impressionantes de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (Companhia das Letras), de Svetlana Aleksiévitch. A Nobel de Literatura passou anos coletando depoimentos de franco-atiradoras, pilotas, tanquistas, soldadas e outras tantas mulheres da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas que lutaram contra os nazistas na 2.ª Guerra Mundial. 

Mas, em vez de focar nas glórias e conquistas, o tradicional ponto de vista masculino, Svetlana resgata lembranças, emoções e sensações das combatentes. Logo no começo, conta que já no século 4.º a.C. mulheres lutavam nas tropas gregas. Depois, participaram de campanhas de Alexandre, o Grande. No cerco a Constantinopla de 626, foram achados cadáveres femininos. Nos séculos 16 e 17, soldadas serviam em hospitais militares na Inglaterra. A mesma Inglaterra aceitaria mulheres na Força Aérea Real na 1.ª Guerra. Mas foi na 2.ª que elas serviram nas tropas de vários países. No Exército Vermelho, foco do livro, lutou quase um milhão de mulheres. 

Daria Vasylchenko, soldado e médica das Forças de Defesa Territorial da Ucrânia, em Kiev. Foto: Heidi Levine/The Washington Post - 5/3/2022

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“Imagine uma grávida que andava com uma mina. Esperava um filho. Amava, queria viver. E, claro, tinha medo. Mas ia... Não por Stalin, ia por seus filhos. Pela vida futura deles. Não queria viver de joelhos.” 

Relatos do tipo indicam por que elas iam ao front. Sensação de dever com a pátria, ânsia de vingar entes queridos, euforia inocente. “Viajamos na carroceria, todas com lenços diferentes. Como se não estivéssemos indo à guerra, mas a um concerto.” 

Algumas mulheres deixavam filhos para lutar. “A última noite passei inteira de joelhos ao lado do berço.” Outras viram o corpo se adaptar, pararam de menstruar, tiveram de se ocultar. “Mulher na Marinha era algo proibido. Consideravam que trazia azar ao navio... Então parei de admitir que era mulher.”

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Exaustão, fome, frio, sono, sujeira e sensação de envelhecer décadas eram comuns. “Quando a guerra acabou estava com 19... Minhas amigas dançavam, se alegravam e eu não conseguia. Olhava a vida com olhos de velha.”

A guerra feminina retratada por Svetlana é também a do cheiro de corpos queimando, barulhos como o estalar de crânios, cores como a de sangue. Há ainda os traumas, contados de maneira tão pungente que atiçaram censores e fizeram o livro passar anos na gaveta.

Lendo-o agora, décadas depois, o incompreensível é que russos e ucranianos estejam se matando na terra onde um dia, unidos, derrubaram seu sangue contra o nazismo. Homens e mulheres. “Os tempos mudam, mas e o ser humano? Penso na estúpida repetição da vida.”

Opinião por Luciana Garbin

Editora no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos.

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