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Opinião|Crimes do futuro: o corpo em questão

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Em Crimes do Futuro de 1970, o jovem David Cronenberg fala sobre doenças da pele. Em Crimes do Futuro de 2022, o veterano Cronenberg evoca o avesso da pele. Dirige-se ao interior do organismo. E a um futuro distópico em que seres humanos sofrem mutações, não sentem mais a dor e têm de se submeter a cirurgias para extração de órgãos internos que crescem de maneira desordenada. 

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Nesse avesso da pele, a beleza é interior,  sustenta o filme, não sem alguma ironia. Viggo Mortensen e Léa Seydoux formam o casal de performers que exibe ao público cirurgias que ela pratica, a seco, no corpo dele. 

Não há dor. Pelo contrário. Há gozo. A tal ponto que uma das frases torna-se emblemática da obra: "Cirurgia é o novo sexo". Ou seja, quando o sexo convencional aparentemente perde seu atrativo, a intervenção cirúrgica ocupa seu lugar e ganha valor erótico. Um trauma pode provocar prazer, como em Crash, no qual acidentes de carro tornam-se sensuais. 

Para Cronenberg, na superfície da pele, ou em seu avesso interior, trata-se de fazer do cinema um veículo de especulação sobre a questão do corpo. Ou melhor, coloca o corpo como questão. 

De fato. Falamos em utopias ou distopias, discutindo os efeitos de transformações sociais radicais sobre os relacionamentos humanos, a política ou o meio ambiente. Esquecemo-nos do corpo. O corpo é ignorado, coloca-se num ponto cego. Ou ainda, para pensar como Lacan, o corpo é o Real. Aquilo que resiste à simbolização. Suporte do nosso estar-no-mundo, segundo a fenomenologia de Merleau-Ponty, dependemos dele, mas o colocamos em regime de repressão. É como se diz: a saúde é o silêncio do corpo. É o meu mais íntimo - e o mais desconhecido de mim. 

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Essa meditação põe-se em marcha no cinema de Cronenberg com uma mise-en-scène bastante clássica. Os ambientes são escuros e Cronenberg não poupa o espectador. As cirurgias eróticas são mostradas en détail. No entanto, não com o realismo de precisão dos filmes médicos - indicados para especialistas e só para eles. Ficam entre o realismo (suficiente para incomodar) e o fantasioso (suficiente para tornar esse incômodo suportável).

Acho as ideias melhores que sua realização. A desfiguração do corpo é um corolário bastante razoável para o descaminho da civilização. Mas o Cronenberg de Crash me parecia mais ousado, sobretudo ao entrar em terreno desconhecido, que ia, claramente, além do seu controle e mesmo compreensão. Em Crimes do Futuro as coisas são mais bem administradas. É perturbador, ainda, em especial pelo gosto do bizarro. Mas não é mais aquela caminhada do bêbado à beira do abismo, como no filme mais antigo. Veterano, Cronenberg torna-se mais cauteloso, mais preocupado em fechar um sentido e fazer-se entender. Mesmo assim, ainda nos agarra pelo pescoço e tira o chão dos nossos pés. 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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