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Opinião|'EO', o caos do mundo pelo olhar inocente de um burrico

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O mundo louco da espécie humana visto pelo olhar de um animal. Tal é a proposta de EO, do diretor Jerzy Skolimowski. Aos 84 anos (na época da filmagem), o cineasta polonês revela-se em plena forma. Ele retoma e reinventa o tema de outro monstro sagrado do cinema, o francês Robert Bresson (1901-1999), autor, em 1966, do clássico Au Hasard, Balthazar - no Brasil, com o título de A Grande Testemunha. 

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Como o mundo mudou de lá para cá, o asno contemporâneo enfrenta contingências ignoradas por seu congênere dos anos 1960. Ambos contam com o amor de uma garota, trabalham no circo e depois servem como animais de carga. Conhecem humanos que os tratam bem e outros que os tratam mal. Mas o bicho atual enfrenta também problemas da Europa contemporânea como contrabando de carne animal entre países da comunidade e um niilismo humano que apenas se podia entrever em meados dos anos 1960. 

Se o tom de Bresson é solene e tende para o religioso até a ascese final, o de Skolimowski mostra-se, digamos, mais cru, laico e, em determinadas passagens, enviesado para o registro lisérgico. É quando, por exemplo, o animal atravessa túneis, uma barragem e paisagens tiradas de um sonho ou pesadelo, sob a tensão da trilha sonora impactante. Nesse ponto, o filme dialoga de forma aberta com a ficção científica e, ao mesmo tempo, critica esse mundo humano desprovido de piedade, sob a pressão do business e da competição. 

Apresentado no Festival de Cannes do ano passado, EO de início despertou desconfiança. Afinal, como Skolimowski se atrevia a fazer o remake de uma obra-prima consumada? Depois de visto, as reservas se dissiparam. Afinal, se a inspiração é a mesma, os caminhos trilhados pelos dois filmes mostram-se bem diferentes. De comum, apenas o olhar ingênuo sobre o mundo que não se compreende. De certa forma, trata-se da radicalização de um dos recursos comuns do cinema - contar o mundo adulto pelo olhar inocente de uma criança, para desvendar seu absurdo. Aqui, é o olhar de um animal que enxerga esse mundo de maneira fragmentada, apenas  guiado pela intuição do perigo e o desejo instintivo de salvar a pele. 

Sobreviver a qualquer custo - este parece um tema familiar a Skolimowski. Seu trabalho anterior - Essential Killing - apresentado no Festival de Veneza de 2010, mostra o fugitivo talibã (Vincent Gallo), faminto e com frio, atravessando a floresta desolada e disposto a tudo para escapar com vida. 

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Em EO, essa luta pela sobrevivência nos atinge em cheio, mesmo que pelo olhar do animal. A arte de Skolimowski consiste em evitar o recurso fácil da antropoformização e, ao mesmo tempo, convidar o espectador a ver o mundo pelo olhar desse Outro absoluto, o animal. Não é pouca coisa, e o respeito da crítica internacional pelo filme é sinal de que o veterano diretor ganhou sua aposta. 

Denso no conteúdo e ousado na forma, EO conjuga suas propostas estéticas na fotografia magnífica de Michal Dymek e na trilha sonora inspiradora de Pawel Mikietyn. Obra sensorial e intensa, nos atinge diretamente pela emoção, mas também na compreensão crítica de um mundo indiferente, violento e muito errado. 

Skolimowski introduz uma cartela final dizendo que EO foi inspirado pelo amor aos animais e à natureza. E, também, pode-se acrescentar, pelo desgosto com a destruição sistemática do planeta e dos seres que nele habitam. 

Cotação: ÓTIMO

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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