Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|ETV 2024 (1): 'O Competidor' e o sadismo do público

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

Começou o 29º É Tudo Verdade (ETV), festival de documentários que, este ano, traz 77 filmes (entre curtas, médias e longas) de 34 países. Uma maratona, incluindo ainda debates, mesas redondas, aulas magnas e conversas sobre as obras. Teve início na Sala Cinemateca, em São Paulo, com a cerimônia de abertura e o intrigante longa britânico O Competidor, de Clair Titley. 

Antes de entrar no filme, é preciso dizer que a abertura do festival foi um sucesso. Tão grande que muita gente ficou de fora e foi preciso organizar uma segunda sessão do filme de abertura. Foi-se o tempo em que documentários interessavam apenas a aficionados. O público ampliou-se, e é preciso levar isso em conta ao se planejar as sessões. 

 

PUBLICIDADE

Dito isso, O Competidor refere-se ao que se supõe seja o precursor dos reality shows, tipo Big Brother. No Japão, em 1998, um homem apelidado de Nasubi (beringela, por seu rosto alongado) é convidado para um desafio: ficar preso, nu, em um apartamento exíguo, tentando sobreviver apenas com cupons de concursos. Com esses cupons, ele teria de buscar alimento, roupas, utensílios domésticos, o que fosse para sobreviver - até completar a meta de um milhão de dólares (ou de ienes?) em prêmios. O que ele não sabia é que sua saga de sofrimento e humilhação estava sendo transmitida pela TV e fazendo tremendo sucesso, a ponto de transformá-lo em celebridade nacional. 

Pelo menos em sua primeira parte, o file é, sem dúvida, um exercício de sadismo, que se compraz com o sofrimento de um homem. O próprio produtor do programa, que dá vários depoimentos no doc, parece um êmulo do Marquês de Sade, alguém que obviamente se diverte com a dor alheia. E mais: lucra com ela. 

O Competidor é aquele tipo de filme que sempre nos deixa na dúvida sobre se é uma crítica ou cúmplice daquilo que mostra. Ambíguo, parece deixar qualquer um dos caminhos abertos à interpretação. 

Publicidade

Esteticamente, não nos dá trégua. Acompanhamos a história de Nasubi com um registro visual super poluído de intervenções gráficas e comentários jocosos - tais como foram transmitidos para milhões de espectadores - e sem que o "protagonista" se desse conta do que estava acontecendo, vale reforçar. 

Se ficássemos apenas com a primeira parte, o filme pareceria execrável. Mas há uma segunda parte, um twist que não vale a pena revelar, mas que relativiza muita coisa. Talvez seja uma maneira de passar pano numa situação eticamente insustentável. Ou de amenizar a conclusão pouco lisonjeira a que chegamos a respeito da espécie humana. Afinal, esses programas do tipo "mondo cane" só existem e prosperam porque um grande público se sente atraído por eles, assim como os antigos romanos se divertiam com as atrocidades cometidas no Coliseu. 

Essa segunda parte, que se debruça sobre aquilo que Nasubi faz com a fama obtida durante seu ano e três meses de cativeiro televisionado, mostraria outra vertente dessa "natureza humana" tão propensa ao espetáculo vil. 

Essa duplicidade é que torna O Competidor um filme digno de ser discutido. Ainda mais nessa nossa época de eufemismos, pudores e moralismo barato, que procura jogar para baixo do tapete tudo que pareça contraditório ou não se enquadre em polarizações infantis. Pode haver todo um mundo entre o bem e o mal.  

Publicidade

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.