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Cinema, cultura & afins

Opinião|Olhar 2023: O Mel é mais Doce que o Sangue e No Calor da Noite

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CURITIBA - Momentos de rara beleza e força poética na apresentação de O Mel é mais Doce que o Sangue, de André Guerreiro Lopes. O título refere-se a uma obra de Salvador Dalí. E evoca outro espanhol, Federico García Lorca, fuzilado pelos fascistas na Guerra Civil Espanhola e convertido, desde então, em signo libertário diante da opressão. 

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O filme tem uma fotografia magnética. São belas imagens a serviço dessa potência poética difícil de encontrar no (em geral) burocrático cinema que se pratica hoje em dia. Cinema de mensagens unidimensionais, pregando para convertidos, defensor de causas que podem ser boas mas encontram nele um veículo de estética pobre. 

Aqui, o registro é diferente. A força poética, baseada em imagens da cidade de São Paulo e nos versos de Lorca, explode em mil dimensões e fragmentos. Desses estilhaços, junta compreensões. Por exemplo, quando a partir da Espanha fascista dos anos 1930 arma uma ponte para as manifestações golpistas dos camisas amarelas aqui no Brasil. 

A figura libertária é defendida e encarnada pela incrível Helena Ignez, aqui no papel de uma andarilha que arrasta consigo, pelas ruas da cidade, um estranho equipamento. Uma espécie de caixa das maravilhas em que, olhando-se por uma abertura, podem-se ver coisas indescritíveis, como duas cabeças que dialogam e formulam ideias inquietantes. Este é um verdadeiro cinema de invenção, simbólico, polissêmico e engajado. 

 

Na série de clássicos, o Olhar de Cinema trouxe No Calor da Noite, filme de 1967 de Norman Jewison, com Rod Steiger e Sidney Poitier nos papéis principais. Poitier é o grande destaque e o filme foi programado em sua homenagem, já que o ator faleceu no ano passado. 

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Poitier faz Virgil Tibbs, um detetive que vai visitar sua mãe no Mississipi e é preso como suspeito de um assassinato. O xerife Bill Gillespie (Rod Steiger) percebe o equívoco. Logo descobre que Virgill é um especialista em homicídios e o convoca, meio a contragosto, para ajudá-lo a resolver o assassinato de um empresário da cidade. 

Poitier é uma espécie de Sherlock Holmes negro, como escreveu a crítica Pauline Kael. Um gênio da dedução, em tudo contrastante com o ambiente simplório e preconceituoso da cidade. É o homem do "Norte", que vem ensinar aos caipiras do sul como se investiga um crime. 

Pela história dessa investigação (que, diga-se, tem muitos pontos obscuros), afloram as características principais da cidade, a saber, a intolerância, o racismo, a falsa moral. Como se o cinema colocasse essa sociedade disfuncional sob a observação implacável do seu raio-X. Em meio à enquete aparecem os personagens da cidade que traçam um sentido fragmentado - o milionário que parece estar por trás de tudo, um bando de rapazes violentos e tolerados pela lei, uma ninfeta que aparece grávida, um auxiliar de xerife bastante esquivo, e por aí vai. 

Nem tudo é brilhante; há algumas caricaturas, como a da moça excessivamente sexualizada, ou a boçalidade gritante de alguns personagens. O próprio Rod Steiger, sempre mascando um chiclete, parece bastante over no início da trama. No entanto, seu papel tem curva dramática e evolui à medida que o tempo passa e evidências conduzem a investigação para direção inesperada. 

A grande figura é mesmo Sidney Poitier, cool, tranquilo, dono de dignidade inabalável. O contraste de sua elegância com a brutalidade tosca da cidade é o melhor comentário antirracista que se poderia fazer. Fala por si, sem necessidade de discursos. Ah, sim, a cópia brilhava na tela, como nova. 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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