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'Luz nas Trevas' dá sequência à saga do Bandido da Luz Vermelha

Cantor Ney Matogrosso fala sobre seu papel no longa-metragem que estreia neste fim de semana

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Por Redação
Atualização:

Seus autores favoritos de cinema sempre foram Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti e Federico Fellini, mas hoje, sem deixar de admirar o primeiro, Ney Matogrosso tende a achar que seus filmes ficaram 'datados'. O que não mudou foi a intensidade da relação com o filme que mais vezes viu - Blade Runner, o Caçador de Androides, de Ridley Scott. "É muito interessante." O filme que Ney Matogrosso mais viu e admira é apenas interessante? "Sou muito crítico, não me derramo em elogios. Mas, se você insiste, é maravilhoso, aqueles diretores que citei são maravilhosos." E com relação a si mesmo? "Sou mais crítico ainda." Como ele se vê em Luz nas Trevas, o longa de Helena Ignez, codireção de Ícaro Martins, que estreia hoje? "Não vou ganhar o Oscar, mas acho que não passo vergonha." Ney Matogrosso foi sempre um artista ousado, sem medo de arriscar. Ainda assim correu grande risco ao aceitar o desafio que Helena Ignez lhe propôs: refazer a trajetória do lendário Bandido da Luz Vermelha, que já havia sido protagonista de um filme cultuado de Rogério Sganzerla, na eclosão do que ficou conhecido como 'cinema marginal'. Marginalidade é coisa de que Ney entende. Na entrevista que se segue, ele fala de cinema, do Bandido e reconstitui a própria trajetória. Embora já tivesse feito filmes antes - Sonho de Valsa, de Ana Carolina; Caramujo Flor, de Joel Pizzini -, sente que, aos 70 anos, está iniciando nova etapa.Como surgiu o convite para fazer Luz nas Trevas? Estava fazendo show num teatro do Leblon, a Helena foi me cumprimentar no camarim e fez a proposta, me convidou para fazer o filme. Aceitei, mas quando cheguei em casa, comecei a pensar. Ela está me chamando para um remake do Bandido? Sempre gostei de me arriscar, mas comecei a achar que estava arriscando demais, que iam fazer comparações com o filme antigo. Helena me tranquilizou, disse que era algo novo, que as referências ao filme de Sganzerla estariam presentes o tempo todo, mas não seria uma refilmagem e, sim, uma sequência.Suas performances extrapolam o vocal, são voz mais corpo. Atuar não deve assustá-lo. Mas Helena disse o que esperava de você? Bom, foi o que perguntei e ela respondeu que queria tudo. Perguntei como devia me preparar e ela disse que não queria preparação nenhuma. Li o roteiro, conversamos várias vezes e a data do início da rodagem foi se aproximando. Me bateu a insegurança. Ela me tranquilizava, dizia que ia dar tudo certo.Você já tinha experiência de cinema, com autores como Ana Carolina e Joel Pizzini. É o cinema de que você gosta, o autoral? Sem dúvida. Não sou muito chegado a blockbusters. Vejo algum por curiosidade, para me atualizar com a evolução técnica. Gosto muito de iluminar e a atualização é necessária, mas o cinema de que gosto é o que analisa ou discute comportamentos, que quebra normas.Como foi sua experiência com Ana Carolina? Cheguei ao set de Sonho de Valsa completamente cru de cinema. Já era um artista cênico e, na hora de filmar, me aprontei como no palco. A Ana me disse: "Ney, você parece que vai voar." É que fiz como nos espetáculos, inflei o peito, levantei o ombro e fui em frente. Foi demais. Aprendi ali que cinema é mais interiorizado, exige sutileza. Se o diretor pede "Olha pro lado", a gente vira os olhos, não vira a cabeça, nem corpo. No cinema, a gente representa muito com os olhos.E o Bandido? A partir do roteiro, dava para sentir a revolta do personagem, que ficou preso mais de 30 anos. Sua contenção devia ser uma coisa explosiva, muito forte. Propus a Helena que ele tivesse um olho de cobra, que olhasse fixo, duro. Tenho um sítio, no qual fico muito à vontade, deixo crescer a barba. Um paparazzo me fotografou, achei que estava interessante. Propus a barba e a Helena topou.E os movimentos do corpo? A ideia é de que ele tivesse se cuidado ao longo destes 30 anos. Não estava decrépito. Há momentos em que ele se movimenta dentro da cela. Na primeira vez, avancei muito rápido e foi até o Ícaro (codiretor Ícaro Martins) quem me sugeriu que fizesse menos. Mas nunca quisemos dar essa impressão de que ele fosse decrépito.Você conhecia o filme do Sganzerla, tomou o Paulo Villaça, o protagonista, como referência? Era justamente o que queria evitar, a comparação. Não que eu tivesse medo dela, não era isso. Aliás, a Helena, com toda a liberdade que me deu, dizia, isso: queria que fizesse a minha voz mais grave, e observei que minha voz mais grave não seria a do Paulo.Problemas em aparecer nu? Problema moral, nenhum. Já havido sido fotografado nu, mas numa época em que isso representava transgressão. Hoje, há vulgarização do nu masculino. Quando li o roteiro, sabia que haveria a cena. Disse: faço e você (Helena) decide se usa ou não. Na hora, foi só tirar o roupão.Você teatraliza o próprio corpo. Como começou isso? Veio do teatro, que interrompi quando entrei para o Secos e Molhados, mas nunca larguei completamente. Quando garoto, lá em Mato Grosso, aos 16 anos, eu era complexado. Vivia com as mãos nos bolsos, porque tinha vergonha delas. Não mostrava os pés, não tirava a camisa para que as pessoas não vissem o monstro que achava que era. O que me salvou foi a Aeronáutica. A gente tinha de tomar banho nu. Eram 20 chuveiros, 20 caras nus. Se não tirasse a roupa, iam infernizar a minha vida. Tirei a roupa, via os corpos dos meus colegas, eles viam o meu. Tudo muito natural. Eu não era o monstro que temia. Minha relação com o corpo começou a mudar ali, e de complexado passei a conviver melhor comigo.Sganzerla é ícone do cinema marginal. Você, pelo comportamento libertário, a ousadia em liberar a porção feminina, deve entender bem de marginalidade, não? Entrei nesse nicho, sim. As pessoas diziam: quando começar a ganhar dinheiro, ele vai mudar. Não mudei. Detesto governo, autoridade, família, me revolta a injustiça social, acho Brasília uma bandalheira. Assim como gosto de arriscar, o que mais preservo é minha independência. Se isso significa ser marginal, então sou.

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