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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Lugar de

Num mundo em que a elas não foi dado o espaço de exposição e do trabalho, nem o mesmo salário, é através de homens que lemos sobre mulheres

Atualização:

Na sala de roteiro de uma série, o ideal é ter mulheres, negros e gays. Hoje, torna-se exigência de algumas produtoras. E cabelos grisalhos, por favor, o que nem é exigência, mas necessidade. Nada contra a juventude. Repertório é tudo. 

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Na sala de Família Soprano, tinha até um ex-mafioso que sugeriu Tony matar com as mãos um dedo-duro no episódio mais premiado, que a HBO tentou vetar, em cena que mudou a TV mundial e fincou complexidade, camadas, a bom protagonistas (Don Draper, Walter White, Dexter, McNulty). É inconcebível um herói sem defeitos, fraquezas, loucura. Game of Thrones, a série tão falada, tinha personagens femininas marcantes que conduziam a trama, duas rainhas, duas princesas, duas além do seu tempo, todas empoderadas, complexas, influentes: Daenerys, Sansa, Cersei, Arya, Brienne, Catelyn Stark, Margaery Tyrel, Ygritte. Conduziram exércitos, declararam guerras, ensinaram, lutaram de igual pra igual.

Nas primeiras temporadas, tinha uma roteirista de primeira no time, Vanessa Taylor, com o que ganhou dois Emmy (em 2013 e 2014). A partir da quarta temporada, não tinha mais mulheres na sala, e somente uma mulher dirigiu quatro episódios da série de oito temporadas, Michelle MacLaren (em 2013 e 2014). 

Muitos sempre se queixaram de que a série precisava de escritores melhores. A partir da quarta temporada, só homens escreveram a trama pontuada por personagens femininas. Foi então que elas se perderam, e sumiu a sutileza: Cersei e Daenerys viraram duas tiranas vingativas, Sansa, uma sonsa, Arya parecia um menino. Brienne, um homem. 

E depois de oito temporadas, o trono foi para um... rapaz. De acordo com o Reddit, os showrunners de Game of Thrones lideram os resultados de pesquisa do Google para “escritores ruins”.

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Como me deu trabalho, na sala de roteiro da cerimônia da abertura Paralímpica, pedir para evitarem os clichês “superação” e “realização de um sonho”. 

Certo dia, desabafei: “Olha aqui, não superei meu acidente coisa nenhuma, ninguém supera, nem superará, é uma droga estar numa cadeira de rodas, ser amputado, cego, nós temos que nos adaptar, escolher um caminho, viver. É a vida, pô!”. 

Por sorte, um artista ultrassensível, meu colega Vick Muniz, entendeu no ato meu desabafo e comprou a minha briga. Sem um deficiente naquela sala, seria uma cerimônia lambuzada na pieguice e frases feitas. 

Como deficiente, defendo com veemência o lugar de fala. Mas apenas uma mulher pode escrever sobre uma mulher?

Pense na mitologia grega e nos arquétipos de Afrodite, Electra, Atena, Artemis, Hera, a deusa das deusas. Pense na Bíblia Sagrada, em Madalena e Maria. Foi um homem, Sófocles, quem escreveu sobre Jocasta, e outro homem, Eurípedes, sobre Medeia. A tragédia, o infortúnio e a miséria humana recaíram sobre a neta do Sol, a favorita das trevas, e sobre a mãe de Édipo.

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Foi Shakespeare quem esculpiu personagens elaboradas como a manipuladora Lady Macbeth, a arrojada e sonhadora, disfarçada de inocente, Miranda, a romântica, ousada que rompe tabus, Julieta, a deprimida e enigmática Ofélia, todas inconformadas em luta contra o sistema patriarcal, em busca do espaço decisório, questionando o papel social da mulher, revoltando-se até com a morte. 

Está aí o problema: são personagens à sombra dos homens. São datados. De uma era que não tem mais volta.

Penso na mulher da bossa nova, uma “coisa” linda que vem e que passa, apenas para o encantamento dos olhos masculinos, com o corpo dourado, num doce balanço a caminho do mar, que surge para realçar a tristeza na solidão, cuja beleza não é do poeta. Coisa?

Mas penso em Cartola e na música em homenagem à filha, O Mundo É um Moinho, que não sabe o rumo de sonhos tão mesquinhos a tomar, que serão triturados por um moinho. Vai reduzir as ilusões a pó. 

Penso em Diadorim, que precisa se fingir homem para se vingar. Penso em Orlando, o herói de uma autora, Virginia Woolf, que um dia acorda mulher. Guimarães Rosa escreveu sobre uma mulher fantasiada de homem. Virginia fez o oposto. Existe acerto e erro na arte? Penso na complexidade das personagens femininas de Chico Buarque e Caetano Veloso, na aflição, solidão e dor: “Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher” (Tigresa). Um homem que melhor escreveu sobre uma mulher?

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Num papo de bar, fui corrigido por Júlia, que disse: “Soa um pouco machista a oposição entre ser feliz e ser mulher”. Para mim, a frase era óbvia: com alguns homens foi realmente completa e feliz, com outros cumpriu apenas seu papel social, como Bovary, Ofélia, Maria, Atena; irrelevante o que sentia.  Mas, para Júlia, era o oposto. Como mulher é que ela foi completa, sentiu-se amada. Para ela, ‘foi mulher’ significa que teve uma relação estritamente sexual, o equivalente a ‘foi viril’ para um homem. Foi dona de si, e não de outro. Sempre entendi o contrário. Madame Bovary era Flaubert. Capitu, olhos de ressaca, e Sofia, morangos adúlteros, eram Machado de Assis. E o que falar das mulheres de Chekhov, Nabokov, Bergman e Almodóvar? Quando se escreve sobre uma mulher, na canção, literatura, poesia, teatro e cinema, o autor homem tem que se sentir uma, aliado à observação e ouvidos atentos, memória, sentidos e experiência pessoal.  Mas, é claro, uma mulher é quem deve escrever sobre uma. Num mundo em que a elas não foi dado o espaço de exposição e do trabalho (compare o número de escritoras, cineastas, dramaturgas com o dos equivalentes masculinos), nem o mesmo salário, é através de homens que lemos sobre mulheres. O que vai mudar.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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