A pausa

A pausa que nesse dia não se fez presente, que foi preenchida depois do salão com o almoço com o filho, com o shopping lotado e com algumas ligações de clientes e parceiros que soavam aflitos pela pausa

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Por Alice Ferraz
Atualização:

Como estava combinado, ela parou no dia marcado. Teve pesadelos à noite, acordou aflita e percebeu que não estava atrasada, não tinha reuniões, nenhuma ligação, tudo que estava atrasado ganhou um espaço de tempo para ser feito. Queria comprar alguns presentes, fazer a mão, o pé, ir até a farmácia e escolher um protetor solar com calma. Calma. Fazer com calma. 

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Pulou da cama por hábito e lembrou que não precisava ir rápido ao banheiro, diminuiu o passo com intenção. Pegou a agenda e colocou tudo o que queria fazer nos horários das reuniões e saiu para “a pausa”. 

A pausa que nesse dia não se fez presente, que foi preenchida depois do salão com o almoço com o filho, com o shopping lotado e com algumas ligações de clientes e parceiros que soavam aflitos pela pausa: “Mas você vai mesmo parar? Quanto tempo?”. Lembrou que nesses dois anos se esqueceu e fez com que os outros também esquecessem de que ela parava. 

Ilustração para a coluna de Alice Ferraz Foto: Juliana Azevedo

A necessária força de construção e reconstrução que foi exigida durante a pandemia a fez acreditar que parar era estar em casa, com o computador ligado, mídias lotadas de conteúdo e a postos. Na época, parou de pintar os cabelos, parou de fazer exercícios, parou de ler romances e, claro, de sair de casa em contrapartida de não parar de produzir em nenhum instante. Tinha provado que conseguia, sabia racionalmente ter atravessado a tempestade, a tormenta, estando lá, disponível. 

Agora, em um improvável moto-contínuo, já se passavam 48 horas sem conseguir propositalmente parar. Seria ela um espelho diminuto do cosmo e estaria fadada a um moto-perpétuo girando como estrelas, planetas e, ainda assim, produzindo energia para continuar? Sua falta de paciência, sua cabeça pesada, seu vício noturno por caixas de chocolates, seus pesadelos e sua absoluta falta de noção sobre a diferença entre dias e finais de semana a faziam saber que não. 

O desespero de não lembrar como parar tomou conta dela. Tentou meditar e sua mente inquieta implorou por uma “pausa” naquele exercício aterrorizante. A pausa como tormenta de uma mente que exige movimento. Chegou em casa, se trancou no quarto e chorou compulsivamente sem pressa de acabar, com calma para sentir a densidade das lágrimas nas bochechas rechonchudas.

Deitou na cama e fez questão de deixar o rosto molhado, a testa suada, a cabeleira negra desmoronada até dormir o sono da primeira pausa em dois anos.

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