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Montenegrinha

O dia em que a maior atriz brasileira descobriu que sua pele mudou de cor - e gostou

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Por Ronaldo Bressane
Atualização:
Power. Fernandona, versão lista do Oscar: 'Sou neguinha, sim. Com muito gosto' Foto: MONTAGEM SOBRE FOTO DE MARCOS ARCOVERDE/ESTADÃO

Paulo, você não sabe: acordei preta. Preta não, montenegra. Montenegrinha! Até me belisquei pra ver se não era sonho. Como é que minha mãe, meu pai, nunca me falaram? Você sabia que eu sou negra e nunca me avisou, hein, Bimbo? Sério, acredita? Eu tinha que ficar preta assim, em plena rede mundial de computadores? E eu que nem gosto de tecnologia, odeio computador, tenho nojo de celular... Sim, sim, tá tudo uma grande confusão por aqui. Difícil explicar. Preta fiquei, foi, na internet. Sim, detesto também, é uma maçada, mas o que eu mais detesto mesmo é essa moda de selfie pra cá, selfie pra lá, neguinho se joga em cima de mim no aeroporto pra tirar foto e colocar lá nas redes e... Neguinho? Se falei neguinho? Falei neguinho, ora. Modo de falar, né? Affff, você não pode falar nada que nego... É, Paulo, que coisa, você agora que foi pro outro lado deu pra ser um mala sem alça. Ô Bimbo, você ficou preto aí desse lado também, foi? Já era assim moreno, meio encardido, fala a verdade, hahaha! Me diz, como é o outro lado? Que acontece quando a coisa fica preta? Hã? Hein? Mas eu, racista, Paulo? Só por causa da coisa preta? Escuta, você foi pro céu ou pro inferno, me diz? Deve ter ido pro céu, pra ficar encrespando assim... Poxa... Pra que que eu fui te ligar? Ah, agora você quer saber, né? Bom, foi isso que eu tô te dizendo, saiu num site lá, o Huffington Post, que dizem que é o novo New York Times, vê só a decadência, que o próximo Oscar vai ser o mais branco da história, porque não tem nenhum negro indicado a nenhum prêmio. E aí botaram uma lista dos indicados nos últimos anos. Tem o Jamie Foxx, aquele lindo que fez o Ray Charles, o outro que sempre faz papéis de homens sábios ou de Deus, o Morgan Freeman... Ah, Bimbo: aí do outro lado você não viu se Deus é preto não? Hein? Ô Paulo, sabia que tem um quadrinho famoso que retrata Deus como uma mulher negra belíssima que só anda pelada? Muito bom, uma graça... Quê? Fala alto, a ligação tá terrível. Quando chove aqui o telefone cai. Sei, sei, tá difícil de explicar. É, tá chovendo, mas o calor tá infernal. Africano. Senegalesco. Hahaha! Me diz. Hã? Não falou com você? Poxa, mas já faz tempo que você desencarnou, homem, e nada? Maior ator da história do Brasil e Deus te deixa na salinha de espera? Ham? Eita, Paulo, tem certeza que aí não é o inferno, hein? Aqui? Ah, mas não tenha dúvida, querido, o inferno é aqui mesmo em São Paulo: não tem água e não tem luz... Mas pelo menos não falta coxinha. Hahaha! Tô, tô em São Paulo. Olha só, Bimbinho, deixa te contar que tô com medo da ligação cair. Esse Huffington Post colocou lá Morgan Freeman, a Halle Berry, uma maravilhosa, que fez aquela bomba, a Mulher-Gato... Tinha ator japonês, ator espanhol, atriz mexicana... e euzinha! Ééé! Eu lá, 1999, Fernanda Montenegro, lá na lista de atores não brancos indicados ao Oscar. Pois é, o Javier Bardem, que foi meu filho naquela adaptação do García Márquez, também é preto! Será que é por isso que me colocaram como não branca? Como? Não, Paulo, o Oscar não foi por esse filme, que era bem meia-boca pra te falar a verdade, foi pelo filme do Waltinho, o Central do Brasil. Não, Paulo, o menino do Central do Brasil também não era preto, imagina, filho de banqueiro no Brasil quando é que vai ser preto, homem? Tinha, sim, tinha negro no filme. O Othon Bastos. Hein, o Othon não é negro? Puxa, mas tem um pé na cozinha sim, olha lá. Otavio Augusto? O cabelo é meio enroladinho, não sei, acho que preto não, aquilo é tudo português, uma desgraça igual eu. Quer dizer, vai saber, né, Bimbo? É, você tem razão. Porque português gosta... Eu mesma não sabia, mas nunca é tarde pra gente saber, né? Vai que! Hein? Fala mais alto que tá cortando. Não, não é a ligação, tão cortando uma árvore na rua. Não tô no Rio não, tô em São Paulo, vim visitar uma amiga e fiquei presa na casa dela por causa da chuva, daí te liguei. Tão cortando árvore porque a chuva veio e derrubou mais de mil outro dia, matou até gente, está cheio de árvore podre. Pois é, chove, mas mesmo assim falta água e faz um calor de fritar ovo no asfalto. É, é, eu sei que tá difícil de entender... Luz tem, mas de repente não tem... Tá difícil! É o mundo às avessas! Hahaha! Se vou reclamar? Nada, Paulo, eu tô me achando ótima! Deixa aqueles branquelos azedos misturarem mulato com japonês e mexicano e acharem que é tudo igual. Problema deles. Eu agora vou ser preta, linda, superpoderosa! Eu vou ser tudo! Eu nessa próxima novela sou lésbica, sabia, querido? Eu sou tudo, eu posso ser tudo... Agora eu posso até fazer o papel da Nossa Senhora Aparecida! Já fui a Nossa Senhora e até salvei o João Grilo, só faltava agora ser a padroeira negra. Montenegrinha, Paulo, quando que você ia imaginar, hein? Vou assumir! Fazer um afro! Um black power! Paulo? Paulo! Ih, tua voz tá sumindo... ai, a luz caiu. Ai, o Paulo, um querido, quanta saudade dele... Ai, e agora, nega, como é que a gente vai ficar nesse escuro?

RONALDO BRESSANE É ESCRITOR E JORNALISTA, AUTOR DE SANDILICHE (COSAC NAIFY)

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