É de ficar abismado: Áurea Martins, em mais de 70 anos de vida e 50 de carreira, jamais fez um show solo em São Paulo. Nem mesmo quando saiu dos palcos estreitos da Lapa para beliscar uma fama tardia, a intérprete viu sua agenda ganhar outras praças que não fosse da sua cidade natal. “Eu ficava meio brava no princípio, mas depois pensei: ‘Vou relaxar’”, diz a veterana, longe de ser uma “carioca da gema”. Não gosta de praia, não costuma sair às ruas no carnaval, não desfila em escolas de samba e torce sempre para que um friozinho abale o calor da cidade maravilhosa.
Com sorte, ela vai se deparar com a garoa e o tempo cinza quando estiver aqui semana que vem para sua estreia em palcos paulistanos. Dois shows que podem ser chamados de seus, no Sesc Pinheiros, dias 2 e 3/2.
Em cena, ela carrega uma história de quem viveu basicamente da noite, da música que concorre com a badalação e aspira a fumaça do cigarro alheio. Hoje, à base de cortisona, tenta expurgar as constantes crises alérgicas. “Mas minha saúde está boa”, garante, antes de contar mais um dos bons causos de quem animou a grã-finagem por muitos anos em boates da zona sul carioca. Certa vez, diz ela, um diplomata brasileiro ficou tão emocionado com sua interpretação de Maysa que parou o show para uma homenagem um tanto incomum. “Ele bebeu champanhe no meu sapato!”, lembra, horrorizada. “E depois anunciou: ‘Só se faz isso com grandes estrelas, como Marlene Dietrich e Elizabeth Taylor’.”
Antes de cair na noite, Áurea foi sensação no rádio. Aliás, ganhou seu nome artístico quando desfilava sua voz densa e levemente rouca nos programas de auditório da Rádio Nacional, na década de 1960. Quem se encantou pela moça de Campo Grande foi o apresentador Paulo Gracindo. Os tempos eram férteis e logo a jovem revelação vocal seria admirada por outras damas de respeito, em especial Zezé Gonzaga e Elizeth Cardoso, a Divina. “Ela é minha referência. Tivemos uma certa proximidade. Ela ia me ver depois de seus shows. Deu até canja comigo!”, se orgulha.
O auge foi em 1969, quando venceu na TV o concurso A Grande Chance, de Flavio Cavalcanti. A cantora Maysa, outra de suas simpatizantes, estava entre os jurados que a colocaram na crista da onda da música brasileira. Com o dinheiro do prêmio, ela bancou o primeiro LP, O Amor em Paz, de 1972, que tem arranjos de Luiz Eça.
Passado o êxtase, veio a longa fase da “invisibilidade”, como descreve Hermínio Bello de Carvalho. O poeta e compositor foi o responsável por projetar novamente a carreira de Áurea, restrita até então ao circuito boêmio da capital fluminense. “Ele teve o olhar clínico para me tirar do fundo do bar”, afirma a intérprete. Com o disco Até Sangrar, de 2008, ela voltou a multiplicar seus admiradores notáveis, a ponto de ganhar como melhor cantora no Prêmio da Música Brasileira, em 2009. Marisa Monte e Rosa Passos eram suas concorrentes. No mesmo ano, o cineasta Zeca Ferreira lançou o curta Áurea, que mostra um dia de trabalho da artista na noite e já recebeu mais de 20 prêmios desde que foi lançado.
Não demorou muito tempo para que ela voltasse a brilhar no vídeo. Ano passado, lançou seu primeiro DVD, pela Biscoito Fino, com o registro de um show em estúdio, curiosamente, sem plateia. A atriz Fernanda Montenegro assina a abertura poética do produto audiovisual: “Áurea Martins tem aquela voz que já não existe mais”, declama, emocionada, em certo momento. “Fernanda falou que é suburbana como eu. Ela é de Marechal Hermes e eu de Campos”, relembra a cantora. Outro ilustre que marca presença no DVD Iluminante é Chico Buarque, que canta com ela na faixa Maninha. “Sou fã do Chico. Por mim, deixava ele cantar sozinho.”
Parte do repertório deste trabalho, além da virtuosa banda que a acompanhou no registro, vai desembarcar em SP na semana que vem. Leila Pinheiro e o agora produtor Hermínio estão entre os convidados do show. Áurea aposta na sua experiência para fazer da noite um evento inesquecível. “Não sou uma voz nova, mas também não sou uma voz velha. Uso mais o coração”, conclui.