Dizplay: Zé Ramalho diz que ‘não há mais delírio na música brasileira’

Ao lançar ‘Ateu Psicodélico’, cantor paraibano fala à página de críticas do Estadão sobre a crise da fantasia entre os compositores do País

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Por Julio Maria
Atualização:

Vivemos a crise do delírio. Espécie de cancelamento da fantasia, a racionalização da música brasileira deve ter começado pelos finais dos anos 70 para atender às demandas dos primeiros ambientes industriais da cultura pop. De repente, tudo tinha de soar bem explicadinho para agradar aos primeiros receptores passivos. De repente, ninguém mais ousou levar ninguém a outras galáxias, mostrar-lhes corvos marinhos voadores e apresentá-los ao próprio apocalipse. Ninguém mais, exceto Zé Ramalho.

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Dez anos depois de lançar Sinais, Zé ressurge com Ateu Psicodélico (selo Discobertas) – a partir desta sexta, 9, nas plataformas. Aos 72 anos, ele ainda sabe onde encontrar suas melhores canções e quais portas abrir para acessar um espantoso delírio criativo. Ateu Psicodélico, feito durante a pandemia, tem 12 canções novas e participações do sanfoneiro Waldonys e dos guitarristas Andreas Kisser e Robertinho do Recife. O paraibano de Brejo da Cruz fala ao Estado, com exclusividade:

Clique aqui para ler também as críticas dos discos de Yungblud, Lívia Mattos, Joshua Redman Quartet e Rubi na página Dizplay

Zé Ramalho: quebra de 10 anos de jejum Foto: Leo Aversa

Você escreveu em um breve texto que “esse disco é um manifesto, um turbilhão de imagens e vocábulos para contrastar com a música praticada atualmente no Brasil”. Que música é essa?

Todas as músicas praticadas no Brasil são repetitivas. Não há nada de especial em nenhuma delas. Temas românticos cotidianos e divagações leves sobre política ou casos isolados são repetitivos em quase todas as situações. Como disse recentemente Guilherme Arantes: “Não há mais delírio na música brasileira.” E eu sou o fornecedor de delírios desde o primeiro disco. Na música Vila do Sossego, do primeiro álbum, está a frase: “E nos delírios, meus grilos temer”... Não quero desvalorizar, com isso, quem não delira quando faz música. Mas é um gatilho que, quando é acionado, provoca reações em quem ouve e escuta canções delirantes. Volto a dizer: não estou criticando, nem derrubando nenhuma forma musical da música brasileira, mas estou sim me referindo ao comportamento passivo de todas que são feitas. Se alguém se ofender, paciência.

Você acredita que ainda é possível modificar pessoas com a força da mensagem de uma música?

Claro que é possível! Depende da audiência. Os ouvintes também mudaram – contudo uma canção, um filme, uma imagem podem despertar na mente reações que estavam silenciadas. Quando você vê uma imagem que lhe chama a atenção, você pensa no que está vendo. Numa música é mais movimentado ainda o pensamento, porque tem as sonoridades da composição, que atuam junto às letras que formam imagens e deixam o ouvinte feliz ou agoniado.

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Alguns dizem não entender suas letras. Mas o mistério de uma poesia não é parte do discurso? O não inteligível pode dizer mais do que aquilo que se entende?

Uma vez perguntaram a um habitante das regiões ribeirinhas do Brasil, era uma pessoa que estava escutando rádio e ouvindo uma das minhas músicas, e alguém lhe pergunta: “Você entende alguma coisa do que está ouvindo?” E a pessoa responde: “Não entendo, mas acho bonito”. Isso é o que importa. Entender também importa, mas o que é mais importante é chamar a atenção com algum artifício que emociona. Racional é a maioria das canções de hoje em dia. Fácil de se entender, mãozinha pra cima, sai do chão... Eu produzo, muitas vezes, a negação da racionalidade. Surrealismo é isso. É você distorcer, modificar e aumentar o alcance de sons e imagens, letras e sentimentos.

Sua voz ressurge, mesmo alguns anos depois do último álbum e depois de um período de reclusão, com brilho. Há algo que explique isso, tecnicamente?

Minha voz é um mistério pra muita gente. Não tenho nenhum cuidado, mas ela está dentro de mim e, agora, mais que nunca, aos 72 anos, troveja assustando e deliciando muitas plateias. É uma das minhas habilidades de que me orgulho, mas não tenho cuidado nenhum em gargarejos, em pastilhas, e essas “benzeduras” populares, que tanto se apregoam, não fazem parte do meu trovão. Como eu digo no verso da música “Repentista Marvel” do novo disco: “Não bula comigo não / Que quando eu canto tudo cala / A montanha se abala / E fica diferente o ar”

Queria saber sobre como tem visto o país politicamente nestas vésperas de eleições.

Nosso país passa por novas experiências políticas. A população dos eleitores cresceu. Tem os novos eleitores que conseguiram antecipar a idade para votarem, os de sempre, que adoram votar, e os que, como eu, atingiram 70 anos e estão liberados desse “sacrifício”. Eu não me envolvo mais com nenhuma dessas escolhas. Acompanho tudo pelos telejornais e continuo achando que a vida é uma vida de gado, o povo é um povo marcado e também é um povo feliz!

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