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Felipe Senna desafia os vícios do 'olhar europeu' e cria uma música livre e arrebatadora

Enquanto prepara seu primeiro álbum solo, pianista, compositor e arranjador de 42 anos finaliza projeto com o original grupo Câmaranóva, com releituras camerísticas para autores brasileiros contemporâneos como Lea Freire, Silvia Goes, Filó Machado e Amilton Godoy

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Felipe Senna é um dos mais talentosos e promissores criadores de música de sua geração. E a afirmação não é feita apenas com argumentos críticos, sobre a qualidade do que ele produz. Aos 42 anos, esse pianista, compositor e orquestrador, que pediu para estudar piano aos 6 anos, depois de brincar muito com o instrumento da avó, começou a dar aulas aos 14 e se formou em Composição e Regência na Unesp antes de partir para especializações na Europa, mostra uma inquietude desconcertante. Ao criar, Felipe não se entrega aos padrões de um mundo que vive de sistemas de composição constituídos há séculos e com foco na produção europeia, a música erudita; não se intimida diante da cultura do virtuosismo de um meio que a tem como sua pedra mais preciosa, o jazz e a música instrumental; e não se engrandece diante do universo oral que os letrados tendem a menosprezar, a música popular. Assim, ele aproxima os três campos para estabelecer um dos traçados mais belos e libertários dentre os novos criadores.

O compositor e pianista Felipe Senna em seu estudio Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADAO

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Seu primeiro álbum solo sai ainda este ano, chamado Overture. Antes, fecha o projeto online que criou durante a pandemia com seu grupo de música de câmara chamado Câmaranóva, algo que precisa ser observado antes mesmo de sua composição. Afinal, ele diz, a constituição do conjunto, e ela não é nada convencional, define o pensamento criativo. No começo da segunda quinzena de junho, será exibida a última apresentação da coleção de vídeos Câmara Brasileira, na qual nomes dos mais representativos da música brasileira contemporânea têm suas obras rearranjadas por Felipe e executadas pelo Câmaranóva. Será a vez do tema Turbulenta, da flautista e compositora Léa Freire. Até aqui, e com todos os vídeos disponíveis no canal do grupo, no YouTube, foram visitados os temas Turma Toda, de Arismar do Espírito Santo; Laurence, de Filó Machado; Nívea, do baterista Edu Ribeiro; Choro, do pianista Amilton Godoy; Três Valsas, da também pianista Silvia Goes; e Jeu Nº5, do próprio Felipe.

A história do grupo começou em 2017, com a escolha dos músicos. Com a ajuda da clarinetista Marisa Lui, Felipe fez uma lista com alguns dos melhores músicos de orquestras do País e saiu em busca de cada um. Além de Marisa, spalla da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, chegaram instrumentistas como Erick Ariga, primeiro fagote também da Banda Sinfônica e músico convidado da Osesp; Douglas Braga, saxofonista convidado da Osesp e da Osusp; Bruno Soares, primeiro trompete da big band de Hermeto Pascoal; Rafael Cesário, violoncelista do Quarteto de Cordas da Cidade São Paulo; e da própria Lea Freire e suas flautas soprano, alto, baixo e contrabaixo. Ao final, 16 músicos formaram algo que um tradicionalista poderia estranhar: seu grupo tem mais sopros e menos cordas. “É uma espécie de formação ao contrário”, diz Felipe. E qual a influência desse formato no resultado musical? As ideias de composição vão buscar o material humano que existe e sugerir linhas organicamente possíveis de serem executadas por esses instrumentistas. Mas, como ninguém saberá por onde seguiria sua música se a formação fosse outra, não há diferença porque não há referência.

Um outro desafio, mais palpável, é cultural. Assim como o jazz tem como matriz os Estados Unidos, a música erudita é centrada nos compositores seculares europeus. Assim, a formação orquestral de músicos brasileiros pode ser conflitante, e muitas vezes aniquiladora, de suas naturezas regionais. “Acabamos não conhecendo os sotaques brasileiros possíveis de serem usados por essa música.” Sua vontade de escrever linhas de respiração brasileira e fazer com que cada instrumentista sentisse que aquilo que tocava era seu também foi um primeiro impulso, e o fez definir os autores que teriam suas obras relidas. Sobre Amilton Godoy, ele diz: “Foi ouvindo Amilton que minha vida mudou. Aos 12 anos, eu tocava Rachmaninoff. Quando ouvi Amilton, pensei: Caramba, o piano pode fazer isso também?”. Filó Machado: “Ele é o suprassumo da música brasileira. Tem delicadeza, espontaneidade e suingue”. Arismar do Espírito Santo: “É a alegria na música. Ele tem a energia, a rapidez, a expressão do momento”.

Um terceiro elemento no sucesso do projeto online Câmara Brasileira é a sensibilidade das câmeras que seguem os músicos no momento da execução, comandadas por Lucas Weglinski. Um jogo criterioso de closes, aberturas de planos e entradas de naipes com uma edição tão criativa quanto o que se ouve, já que muitas gravações tiveram os músicos separados por causa da pandemia. É como se as câmeras também lessem partituras e comemorassem o quanto a música que captam são suas também.

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