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No paredão

O interesse pelos reality shows parece em declínio no País

Por Silvia Viana
Atualização:

O Big Brother Brasil está quebrando sucessivos recordes negativos de audiência, em sua 14ª edição. Ninguém mais se importa com os reality shows? Será que estamos mais atentos à "realidade", em tempos de manifestações e politização nas redes sociais? Assim espero, mas é cedo para dizer. O reality show é um formato televisivo que vai muito além do BBB. Há canais voltados exclusivamente para o gênero, tais como o Fox Life; mas há outros, supostamente educativos ou "científicos", nos quais o gênero é quase hegemônico, como o Discovery Home and Health. O BBB é exemplar de um tipo de reality show (de confinamento), mas não podemos esquecer que existem programas voltados para a transformação (tais como 10 Anos Mais Jovem), realities de consultoria (como o Super Nanny) e ainda os de concorrência profissional. Nesse subgênero, o programa The Voice Brasil, comandado pelo mesmo diretor do BBB, teve grande audiência no final do ano passado, mesmo depois da reviravolta de junho. Um ponto importante a se refletir a respeito do fracasso mercadológico ora em pauta diz respeito ao elemento que atrai nosso olhar para o programa. Segundo o senso comum (e, sejamos justos, segundo a grande maioria dos trabalhos acadêmicos voltados ao assunto), o sucesso do BBB se deve a alguma espécie de perversão, seja ela o exibicionismo ou o voyeurismo. Nesse quesito, não se pode reclamar da atual edição, recheada de nus frontais e imagens de sexo sob edredons - li que uma dessas cenas chegou a dispensar o nightshot. Se a isca está na perversão, por que o malogro ibopeano? Porque não é a obscenidade que sustenta esse tipo de programa, mas outro elemento que, pelo contrário, está posto em nossa cena social. Reality shows fazem sucesso porque reproduzem o mundo do trabalho tal como organizado no capitalismo flexível: da ausência de regulamentação (que, nos programas, se traduz na maleabilidade das regras) à batalha concorrencial, que coloca trabalhador contra trabalhador - deixando, evidentemente, o verdadeiro sujeito das desgraças (empresas, do lado de cá da tela, e emissoras de TV, no caso da competição televisionada) fora do campo de luta. Também a seleção não seria um elemento estrutural desse formato televisivo caso já não fosse, do mesmo modo, a espinha dorsal da organização produtiva em seu estágio atual. Contudo, o BBB 14 não deixou de impor seus "desafios" humilhantes, bem como o tão esperado "paredão"; pelo contrário, se não me engano, esta edição promoveu um festival de demissões em massa logo em suas primeiras semanas - afinal, como é próprio da lógica de uma seleção negativa, não se trata de escolher o melhor, nem mesmo o pior, e sim de cumprir a taxa de eliminações preestabelecida; nesse caso, até que sobre apenas um. Dito isso, nos deparamos com a questão de ouro: será que as pessoas se cansaram, a partir dos eventos desencadeados em junho, não do BBB e dos demais realities, mas daquilo que lhes confere forma - ou seja, da vida submetida à acumulação capitalista flexível? Aí, sim, a resposta categórica seria um equívoco, não porque ainda não temos índices de audiência ou pesquisas de opinião suficientes, mas porque o campo Político foi, após 20 anos de consenso extorquido, desatado. A maiúscula para a "Política" não é um erro de digitação, pois essa é precisamente o espaço aberto para o que não está posto na realidade, mas que pode vir a ser. Como tal, essa dimensão esteve, ao longo das últimas décadas, encerrada pela chantagem gestionária que não cansa de afirmar: "Isso é ruim, mas é o menos pior". Com todas as expectativas sociais subsumidas à mera alocação de recursos, perdemos de vista o horizonte do possível, em troca de uma política de planilhas e gabinete. Que agora podemos voltar a falar em Política, não tenho dúvidas - e prova disso é quão ridícula se tornou a afirmação, antes repetida como um mantra, segundo a qual "quem tentar politizar ato na Copa 'vai quebrar a cara', diz ministro de Dilma". Apenas sob o moto-contínuo da politiquinha é aceitável que se dissocie, com a maior naturalidade, "ato" de "Política"... Sendo assim, não há nada resolvido. Até porque a fúria securitária, que chama a Política de vândala e urge pelo retorno da violência habitual - que vai dos suplícios exibidos em reality shows e vivenciados no mundo do trabalho ao massacre mudo e diário de tantos Amarildos - está cuspindo fogo. Resta-nos a questão: o retorno da Luta (maiúscula, pois essa também foi substituída pela esquálida luta pela sobrevivência) trouxe à baila a produção de brutalidade em que se converteu o capitalismo e à qual se assiste nos diversos realities? A queda da audiência do BBB seria um sintoma disso? Talvez seja otimismo demais, até porque, o caminho que leva dos 20 centavos - bem como das remoções humanas devidas a jogos de futebol ou, para ser mais precisa, ao business as usual - à crítica do sistema que nos obriga a engoli-los, e sermos ainda gratos, é longo e cheio de armadilhas. Para além do apetite securitário, das apropriações de discursos e práticas, do ranger de dentes de um reacionarismo cada vez mais delirante e furioso, do risco de voltarmos a tomar parte na elaboração de planilhas e muitos etcs. a mais, temos que enfrentar o próprio permanecer ritualístico do mundo que nos foi legado. Ritualismo da produção incessante e despropositada, que reality shows nada mais fazem que repor. Diante do peso desse culto diário e sem transcendência, torna-se bastante razoável a conclusão segundo a qual o desinteresse pelo BBB14 seja fenômeno próprio do mundo herdado: mercadorias são descartáveis (nesse caso, menos descartáveis que os participantes que a compõem, pois são eliminados semanalmente). O mais provável é que estejamos apenas jogando fora outra tranqueira que compramos sabe-se lá por quê. Contudo, o simples fato de essa pergunta ter sido formulada (será que estamos mais interessados em política?) já guarda a possibilidade de resposta outra - e não sou eu quem a dará.   *SILVIA VIANA É PROFESSORA DE , SOCIOLOGIA DA FGV-SP, AUTORA DE , RITUAIS DE SOFRIMENTO (BOITEMPO)

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