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Nobel de Literatura em 1958, Boris Pasternak tem clássico publicado no Brasil

'Doutor Jivago' transformou seu autor em um traidor da pátria soviética

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Por Flávio Ricardo Vassoler

Ourives da palavra e escultor de imagens poéticas em meio à prosa, o escritor russo Boris Pasternak (1890-1960) ressoa em sua obra-prima Doutor Jivago (Companhia das Letras, Tradução de Sonia Branco) a máxima dostoievskiana segundo a qual “a beleza salvará o mundo”. Munido de um profundo panteísmo, Pasternak celebra o encantamento diante da natureza como a crisálida das metáforas. Assim, o narrador/eu-lírico de Doutor Jivago recita que “observar o rio fazia doer os olhos. As águas ondulavam e refletiam a luz do sol como folhas de metal”. O lago, por sua vez, “estava repleto de nenúfares. O barco cortou essa massa vegetal com um barulho seco. A água surgia no meio da folhagem aquática como o suco no triângulo talhado da melancia”. E que dizer da precocidade poética do menino Iúri Jivago, quando ele sente que “o odor do carvão usado para ferver o samovar” abafa “o cheiro de tabaco e o perfume dos girassóis” enquanto o chá é servido? Estamos diante do mesmo ímpeto sinestésico que descobre “um odor adstringente de nozes frescas em cascas verdes ainda macias, que escurecem ao menor toque”, sinestesia que entrevê a paralisia dos flocos de neve no ar, flocos que descem tão lentamente “como o miolo do pão atirado na água para alimentar os peixes”. 

+++Clássicos russos chegam ao País com visões conflitantes do comunismo

Adaptação de 'Doutor Jivago' dirigida por David Lean 

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Se a ourivesaria poética de Doutor Jivago exalta, em cada uma de suas linhas/versos, a beleza que salvará o mundo, precisamos descobrir se o mundo – isto é, a história com a qual o romance se funde e se confunde – conseguirá salvar a beleza. 

Desde a mais tenra infância até seus últimos momentos em um bonde moscovita; desde que se reconhece como poeta e começa a amar a bela e intensa Larissa Fiódorovna com todas as fímbrias de seu lirismo, a vida de Iúri Jivago se vê afetada pelos grandes eventos históricos que acabam por plasmar o transcurso ulterior da Rússia e do século 20: a tentativa revolucionária de derrubar a monarquia czarista em 1905; a 1.ª Guerra Mundial (1914-1918); a queda do czar, em fevereiro de 1917, e a tomada do poder pelos bolcheviques capitaneados por Vladimir Lenin (1870-1924), oito meses depois; a encarniçada guerra civil (1918-1922) que contrapõe os russos vermelhos e revolucionários aos russos brancos, constituídos por um amálgama sumamente heterogêneo de partidários do czar e defensores do governo constitucional instaurado em fevereiro de 1917, tropas inglesas e francesas, tchecas e polonesas, estadunidenses e japonesas; a coletivização forçada das propriedades rurais, o saque e a pilhagem da produção agrícola pelo governo revolucionário e a fome no campo; as execuções de (supostos) contrarrevolucionários e sabotadores e os expurgos para campos de trabalhos forçados sob a ditadura do líder soviético Josef Stalin (1878-1953). 

Em um momento de radical entrelaçamento entre vida e história, o médico Iúri Jivago caminha – ou melhor, se esgueira – pelas ruas de uma Moscou transpassada pelas barricadas de vermelhos e brancos em meio à guerra civil. Súbito (e como se fosse uma miragem), surge um jornaleiro – um menino de bochechas coradas sob uma boina surrada – e lhe vende uma “edição especial, impressa apenas de um lado da folha, que continha um comunicado do governo de Petersburgo anunciando a criação do Conselho de Comissários do Povo e a instauração na Rússia do poder soviético e da ditadura do proletariado. A chuva açoitava-lhe os olhos, e grãos cinzentos de neve recobriam as linhas impressas do jornal. Mas não era isso que atrapalhava a leitura. A grandiosidade e a eternidade daquele instante o abalavam e o impediam de voltar a si. É a história. Acontece uma vez na vida”.

Ocorre que, com suas origens pequeno-burguesas, Iúri Jivago e Larissa Fiódorovna logo descobrem que o autoproclamado Éden do proletariado tem outros planos para o destino de seu amor. Munida de baioneta, a história cinde a comunhão de Larissa e Iúri com a crueldade de suas engrenagens. Com a pecha de potenciais inimigos do povo e da revolução, Iúri e Larissa se refugiam em um rincão gélido da Sibéria para escapar ao fuzilamento sumário. Ora, é radicalmente sintomática a mensagem subliminar de Pasternak: se o coração é uma célula revolucionária, que utopia e que novo tempo histórico são esses que não conseguem acalentar em seu seio a comunhão de um casal apaixonado?

A publicação de Doutor Jivago em Milão, em 1957, transforma Boris Pasternak em “traidor da pátria soviética”. Em meio às disputas político-culturais da Guerra Fria, Pasternak é coagido pelo governo da URSS a recusar o Nobel de Literatura com que a Academia Sueca o agraciara em 1958, do contrário o escritor teria que abandonar o país imediatamente. Ao fim e ao cabo, Pasternak só aceita o exílio interno em Peredelkino, região próxima a Moscou, por não conceber a vida fora de sua única e verdadeira pátria, a grande literatura russa. 

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*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA) 

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