O aterrador som do silêncio: até quando vamos ignorar o país racista que somos?

Até quando o Brasil vai ignorar o país racista que é? Ao misturar perversamente um pouco de inclusão a enormes barreiras aos negros, confirma-se a incapacidade de enfrentar uma questão tão antiga como assentada entre nós

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Por Lilia Moritz Schwarcz
Atualização:

O ano de 2016 foi embora sem deixar muitas saudades. Se na conta monótona dos dias do calendário ele foi igualzinho aos anteriores, na experiência concreta do dia a dia há de ser lembrado como um ano que custou uma eternidade a passar. A sensação que fica é semelhante àquela que sentimos ao assistir a um seriado de TV, que a cada novo episódio apresenta uma novidade. Às vezes boa, muitas vezes bem desagradável.

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Se fosse escrever, portanto, sobre todos os sustos que tomamos no agora finado 2016, esse artigo não acabaria tão cedo. Por isso selecionei um tema que entrou na agenda para não sair mais: a, assim chamada, questão racial, que inclui, e de forma tensa, temas ligados a gênero. Estou me referindo a certas marcas de diferença – como raça, gênero, mas também sexualidade, geração e região – que a sociedade cria e transforma em “naturais”. É claro que elas nada devem à natureza (somos nós que inventamos tais formas de discriminação), e 2016 está aí para provar.

Nesse ano fomos obrigados a concluir que certos direitos que julgávamos consolidados correm sério risco de perderem-se, frente à nossa fraca e cada vez mais frágil tradição republicana. Estou me referindo aos direitos civis; esses que garantem a diferença no exercício da igualdade, e vice-versa, pois, nesse caso, a ordem dos fatores não altera o produto.

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Hora de dar um refresco à memória. Nesse ano, alguns eventos provocaram as mídias sociais e tornaram-se virais. Ficou famoso o caso da família que foi a uma das manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma, levou o filho num carrinho e, junto com eles, a babá negra Não há espaço para recuperar o que disseram todos os envolvidos. Mais vale destacar a quantidade de representações contidas na fotografia estampada na imprensa do dia 13 de março. O fato dividiu opiniões, mas lembrou, a todos, de um triste passado: aquele das amas de leite (secas ou molhadas) dos tempos em que vigorou a escravidão. Aliás, com o objetivo de minorar o vexame que significou ter sido a última nação Ocidental a abolir esse sistema, e de ter permitido a existência de cativos em todo o território, ainda em finais do século 19, o governo usou desse tipo de representação para tentar caracterizar um suposto lado romântico do cativeiro no país. No entanto, não há nada de benfazejo num sistema que supõe a posse de uma pessoa por outra. Onde a escravidão vigorou, acabou por criar sociedades violentas, aonde o castigo era rotina e a humilhação do cotidiano só podia ser contrabalançada pela força da reação dos próprios escravizados. E não é preciso olhar longe para enxergar tão perto. Essa é a má sensação que restou diante da imagem da babá que apenas acompanhou o protesto “a serviço”. Não tomou parte dele, de fato. Apareceu uniformizada de branco e estava sempre um passo atrás de seus “patrões”.

O País também foi assombrado pelo fenômeno do “familismo” da Câmara de Deputados, no dia 17 de abril. Nossos congressistas votaram pelo impeachment da presidente em nome de suas mães e pais, trouxeram seus filhos, reiteraram suas crenças religiosas ou alisaram seus eleitores acastelados nos Estados e cidades que representavam. O que faltou foram valores democráticos. O que sobrou foi o espetáculo da quase homogeneidade social e de gênero dos nossos políticos, que escorregou para a própria composição dos novos ministérios. A imagem do grupo que passou a cercar Michel Temer escancara uma escandalosa uniformidade. Na foto oficial estavam 27 ministros engravatados, todos homens, brancos e basicamente da mesma classe social. Isso num País em que as mulheres chegam a 51,4% da população e negros correspondiam, em 2014, a 53,6%.

Faltam mais elementos nesse cardápio já farto. Seguindo o mesmo receituário básico, vimos os direitos à diferença perderem seu lugar autônomo e representativo, quando pastas, até então, independentes – como a das Mulheres, a da Igualdade Racial e a dos Direitos Humanos – ficaram submetidas ao Ministério da Justiça. A nova gestão presidencial roubou espaços importantes da nossa experiência cidadã, com os movimentos e coletivos LGBTT, feministas, negros, quilombolas, de pessoas portadores de deficiências, sendo todos transformados num retumbante etcetera.

Em tempos de Olimpíada o tema também ficou quente. A judoca Rafaela Silva, medalhista de ouro nos jogos de 2016, alegou que quase encerrou sua carreira por causa das ofensas racistas que sofreu logo após ser eliminada Em Londres 2012. Naquela ocasião foi chamada de “macaca”, reagiu, mas não desistiu diante dos atos de covarde agressão na internet. O oposto também é verdadeiro; o ginasta Arthur Nory Oyakawa Mariano, o Nory, ficou com o bronze em 2016, mas ganhou, junto com a medalha, muita polêmica. Em maio de 2015, ele e alguns colegas apareceram num vídeo divulgado nas redes sociais, fazendo uma série de comentários racistas a respeito do colega negro Ângelo Assumpção: “Seu celular quebrou (diziam eles em meio a muitos risos); a tela quando funciona é branca; quando estraga é de que cor? O saquinho de supermercado é branco? E o do lixo? ‘É preto’ (dizem os demais atletas em coro)”. Por causa da repercussão, e com receio de cair do “pódio humanitário”, Nory divulgou nova gravação, dizendo que tudo não passava de “brincadeira” (de muito mau gosto, isso é certo). Já o colega, claramente constrangido, respondeu declarando que aceitava as desculpas. Sua expressão o desmentia e o estrago já estava feito.

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O barulho não ficou restrito ao contexto da Olimpíada. Em março de 2016 a atriz Taís Araujo teve sua página invadida por comentários racistas. Respondeu que “não ia se intimidar”; foi à polícia e ainda recebeu apoio de um imenso hashtag: “#SomosTodosTaísAraújo”. O mesmo aconteceu com a jornalista e “garota do tempo” da Globo, Maria Júlia Coutinho, a Maju. Em abril dessa ano ela foi atingida por um tsunami de xingamentos racistas. Descobriu-se que a rede que praticava esse crime atingia oito Estados e contava com mais de 50 criminosos.

Os casos de racismo no futebol cresceram 85% em 2016, enquanto as punições no STJD caíram drasticamente. Jogar bananas nos jogadores, fazer trejeitos, chamar de “Vera Verão”, de “Zeca Urubu” são ainda práticas que pedem por nossa indignação. Há mais de 26 ocorrências de racismo incluídas na Justiça e ainda sem resolução. Pelo jeito, só em 2017.

Esses são apenas exemplos ilustrativos, pois envolvem pessoas e situações públicas. Mas o problema é ainda mais recorrente em nosso cotidiano menos estrelado. São porteiros que barram sistematicamente a entrada de pessoas que não consideram brancas; policiais que fazem batidas sobretudo em veículos dirigidos por negros; clubes que disfarçadamente limitam a estrada de “pessoas de cor”; um Papai Noel negro impedido de exercer seu cargo num shopping (pois o suposto é que o simpático velhinho é branco); uma excursão a uma antiga zona cafeeira do Rio de Janeiro, em Valença, que ainda oferece a “possibilidade” de desfrutar um café “com escravos”; crianças negras que são discriminadas por professoras e não podem ser anjos nas procissões, e assim vamos longe.

Os exemplos são muitos, e sempre, cada um à sua maneira, violentos. O crime de injúria está previsto no artigo 140 do nosso Código Penal e consiste em ofender a dignidade ou o decoro de alguém “na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. A pena pode chegar a três anos de reclusão. Entretanto, e se o promotor assim entender, os acusados podem responder pelos crimes previstos na Lei 7.716, de 1989. Há várias penas estabelecidas, dentre elas prisão e multa. O crime de racismo não prescreve e também não dá direito a fiança.

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Mesmo assim, a lei é pouco acionada. Tanto que no País o racismo é ainda moeda corrente, com negros vivendo menos, tendo menor acesso ao lazer, à educação, à saúde. Aliás, segundo a Anistia Internacional, um jovem negro no Brasil tem em média 2,5 vezes mais chances de morrer do que um branco. Na região Nordeste – onde as taxas de homicídio são as mais altas – essa diferença é ainda maior: jovens negros correm 5 vezes mais risco de vida. Em resumo: os números traduzem condições muito desiguais de acesso e manutenção de direitos, e dados de violência elevados mas também com alvo inequívoco. Revelam mais: padrões claros, que evocam questões históricas, de duração longa, curta e imediata.

A defesa do direito à diferença é bandeira fundamental num país como o Brasil, campeão em desigualdade social. Segundo dados da Receita Federal e do IBGE, 10% dos brasileiros mais pobres fazem jus a apenas 1% da renda do país, enquanto 10% dos mais ricos abocanham 52% do PIB. Mulheres de mesma escolaridade que os homens recebem de 65,9% (na faixa mais baixa de escolaridade) a 58,4% (no ensino superior) a menos para executar os mesmos trabalhos.

A agenda dos direitos civis só virou realidade, entre nós,  a partir do final dos anos 1970 e está longe de se mostrar assegurada. Conviver com as diferenças produz uma democracia saudável e vigorosa. Dialogar com a pluralidade significa enxergar a realidade a partir de novos ângulos e perceber, no limite, como a diferença faz toda a diferença.

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O Brasil continua a perversamente misturar inclusão (sim) com muita exclusão social, racial e de gênero (também). Essa é uma fabulação tão antiga como assentada entre nós, e que encontrou alento nesse ano castigado de 2016. Muitas vezes o nosso presente carrega muito do passado. Ou como perguntaria Kaspar Hauser, famoso personagem do cineasta Werner Herzog, “são esses gritos assustadores ao redor o que chamam de silêncio?”.

LILIA MORITZ SCHWARCZ, ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E AUTORA, ENTRE OUTROS LIVROS, DE ESPETÁCULO DAS RAÇAS (COMPANHIA DAS LETRAS)