O ‘efeito borboleta’ e a eleição, um fator a ser considerado

Literatura já explorou o fenômeno, mas torcemos para ficar longe dele

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colunista convidado
Foto do author Sérgio Augusto
Por Sérgio Augusto

Hoje iremos menos acompanhar a apuração das urnas do que esperar pelo resultado de uma biópsia cívica. Democracia ou fascismo? Civilização ou barbárie? Laicidade ou teocracia? Ciência ou obscurantismo? Política ou gangsterismo? Cultura ou boçalidade? Fraudes ou transparência? Vida ou morte?

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Estes, sim, foram os principais extremos da polarização que o maligno presidente Bolsonaro produziu e estimulou, ao longo dos últimos quatro anos. Extirpemos esses tumores, seus humores e temores.

Esta é a eleição mais importante de nossas vidas, independentemente da idade que cada um de nós tenha. É também nossa última chance de corrigir o desatino de quatro anos atrás, quando pouco mais da metade do eleitorado preferiu a um professor universitário um sociopata ignorante, misógino, negacionista e idólatra de torturador.

Em 2018, a revista Época sugeriu a 22 escritores que recriassem em curtas narrativas ficcionais algumas figuras de maior relevo no que então se afigurava como a mais perturbadora eleição presidencial da Nova República. Um dos autores imaginou o golpista Eduardo Cunha escrevendo cartas da prisão para seu cúmplice Michel Temer, outro sublimou o Cabo Daciolo no Planeta dos Macacos, um terceiro inventou uma partida de golfe entre Bolsonaro e Trump.

Técnicos do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, iniciaram na manhã desta quarta-feira (21) o processo de lacração das urnas eletrônicas que serão usadas nas eleições 2022.  Foto: Wilton Junior/Estadão

Sugestões ainda mais delirantes teríamos à farta na eleição que hoje, para alívio geral da nação, pode fechar a tampa do caixão bolsonarista, com suas fake news, ameaças de ruptura institucional, chantagens políticas, corrupção parlamentar, rapinagem familiar, vigarices religiosas e até manifestações de canibalismo e lascívia pedófila, noves fora o Big Carnival de Roberto Jefferson no fim da semana passada, possivelmente já parte do putsch trumpista esboçado e malogrado em poucas horas na última quarta-feira.

A propósito da eleição de Trump, respondi a uma enquete na internet sobre as mais interessantes obras literárias ambientadas em pleitos presidenciais e suas imediatas consequências. Só podíamos apontar um título. Optei por um conto, na verdade, um clássico da narrativa curta.

Podia ter selecionado o francês Michel Houellebecq, que havia pouco chocado seus conterrâneos ao imaginar, no romance Submissão, a vindoura chegada ao poder na França de um carismático líder muçulmano, mas achei mais procedente restringir minha escolha aos conterrâneos de Trump.

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Considerei os habituais suspeitos – Sinclair Lewis (Não Vai Acontecer Aqui), Nathanael West (Um Milhão de Dólares), Richard Condon (The Manchurian Candidate), Gore Vidal (The Best Man é uma peça, eu sei, eu sei), – optando afinal por Ray Bradbury, cujo conto Um Som de Trovão me impressionou na adolescência.

Publicado há 70 anos e incluído na antologia Os Frutos Dourados do Sol, a política nele entra meio de esguelha. Sua trama se desenvolve em torno de uma caçada guiada a dinossauros na pré-história, a bordo de uma máquina do tempo. A viagem começa no dia seguinte a uma eleição presidencial, vencida pelo favorito nas pesquisas, Keith, um progressista. O derrotado Deutscher é um autêntico protofascista: carola, demagogo, anti-intelectual e militarista. Quando a máquina do tempo traz o protagonista de volta ao presente, a surpresa: por obra do “efeito borboleta”, o favorito perdera a eleição.

Que nenhum sucedâneo do “efeito borboleta” nos tenha reservado uma surpresa desagradável para o dia de hoje.

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