Toda manhã o sociólogo e professor Michael Schudson cumpre o ritual de caminhar do apartamento às margens do Rio Hudson até sua sala no edifício Pulitzer, onde funciona a Columbia Journalism School, em Nova York. Ali, dá aulas tanto para jovens graduandos quanto para veteranos PhDs. Aos 69 anos, sempre com uma mochila nas costas, Schudson prepara o nono livro de uma série que começou em 1978 com Descobrindo as Notícias, seguido de Sociologia da Notícia (2003) e o imperdível Por que as Democracias precisam de uma imprensa desagradável (2008). Só o primeiro foi publicado no Brasil, pela editora Vozes.
Do outro lado do oceano, a milhares de quilômetros da movimentada esquina da avenida Broadway com a rua 116, vive o historiador e professor Peter Burke. Muito mais pacata, Cambridge, no interior da Inglaterra, sedia a universidade de mesmo nome. Burke já publicou 29 livros, muitos editados em português, como Uma História Social do Conhecimento (2000) e Uma História Social da Mídia (2002, coautoria com Asa Briggs), ambos pela Jorge Zahar Editores. Aos 78 anos, casado com a historiadora brasileira Maria Lucia Garcia Pallares-Burke, Burke já não mais leciona, mas orienta jovens pesquisadores.
Schudson e Burke não se conhecem pessoalmente. O que os une, apesar da distância atlântica? Seus escritos são essenciais para entender a história da comunicação humana, da transmissão do conhecimento e do surgimento do jornalismo como atividade organizada e indispensável nas sociedades modernas e sobretudo democráticas.
Em meio à crescente discussão sobre a qualidade do ambiente informativo, em que notícias checadas se misturam com rumores e boatos e são distribuídas em massa pelas redes sociais, Michael Schudson vê “um grande progresso” no jornalismo.
“Hoje há uma atitude mais agressiva e investigativa”, afirma. E rebate as críticas à “trivialização”: “o jornalismo tem hoje mais interesse no campo social e cultural, não apenas em política e economia”. Schudson considera que o jornalismo poderá manter sua missão de apoiar as democracias.
Burke é mais cauteloso. Considera difícil avaliar os impactos da revolução digital, pela velocidade das mudanças. Vê o jornalismo como imprescindível, ainda que a imprensa, em sua configuração atual, se modifique muito. “A demanda por jornalismo tende a aumentar”, afirma.
Nas últimas semanas, o Estado conversou com os dois autores.
MICHAEL SCHUDSON, professor de Comunicação na Universidade Columbia
Seu primeiro livro dá grande atenção à questão da objetividade. O sr. diz que “o conceito de objetividade é justamente este: pode-se e deve-se separar fatos de valores”. Como vê esse assunto hoje?
Há décadas ouço dizer que no jornalismo ninguém acredita mais em objetividade, apenas em “justiça”. E em anos recentes ouvi dizer que o ideal dos jornalistas não é objetividade, mas “transparência”. Mas meu entendimento é que a objetividade – escrever conscientemente o que se vê, não o que se gostaria de ver – permanece o valor dominante no jornalismo americano. Não significa que seja o único valor. Escrever de modo a interessar, entreter e segurar a atenção do leitor é outro valor, e legítimo. Capturar a atenção da audiência tem considerável valor de mercado. Mas é também parte elementar do trabalho de informar o público. Até um professor de química empenhado em fazer seus alunos do secundário memorizarem a tabela periódica tenta tornar a tarefa mais engraçada. Não há pois, razão para jornalistas não usarem humor, esperteza, dramaticidade e outros truques do entretenimento para passar a informação que julgam importante.
Em 2003, quando publicou pela primeira vez “Sociologia da Notícia”, o sr. assinalava os perigos que o jornalismo já vinha enfrentando com a “trivialização do conteúdo e a possibilidade de que reportar assuntos públicos não seja economicamente sustentável”. Como vê hoje essa possibilidade? O jornalismo sobreviverá?
Acho que devemos ser cautelosos sobre o que consideramos “trivialização da notícia”. Nos Estados Unidos, críticos de mídia reclamam há pelo menos 150 anos de trivialização de conteúdo. No entanto, a maioria dos jornalistas que vêm analisando a matéria acredita que o grande jornalismo americano está melhor desde os anos 1970 e continua melhorando em 2016, mais que em qualquer período da história dos EUA. Parte dessa melhora se deve a uma atitude mais agressiva e investigativa dos jornalistas. Parte vem de uma consciência maior das fontes de notícias, revelada nas próprias notícias – o público é muito mais bem informado hoje de onde vêm realmente as informações do que era antes dos anos 1970. E outra parte da melhora é que a mídia cobre hoje muito mais assuntos de interesse humano, negligenciados pelo jornalismo convencional ou cobertos por meio de “press releases” desde o século 19 até os anos 1950. Hoje se cobrem assuntos como família, sexualidade, ciência, medicina – temas significativos da vida antes proibidos de mencionar (a BBC baniu discussões sobre controle da natalidade e divórcio até os anos 1950, quando foi forçada a rever sua política, pressionada pela competição comercial). É difícil imaginar matérias sobre abusos sexuais na Igreja Católica, desvios de conduta sexual nas Forças Armadas americanas, discriminação contra mulheres, comunidades LGBT, minorias raciais e étnicas, sendo tratadas com destaque, ou simplesmente sendo tratadas, em qualquer período antes dos anos 1960. Que tópicos consideramos “triviais”? Em parte, coisas que não nos dizem respeito ou achamos indignas. Há muitos assuntos de interesse humano que nos sentiríamos mal discutindo em voz alta. Até os anos 1960, muito poucos médicos diziam a pacientes com câncer que eles tinham a doença. Já pelos 1980, quase todos os médicos passaram a considerar essa uma informação que deveria ser compartilhada. O jornalismo tem hoje mais interesse no campo social e cultural, não apenas em política e economia, e isso me parece um grande progresso.
O jornalismo conseguirá manter sua missão de apoiar as democracias?
Prefiro falar em “missões” em vez de “missão”. Sim, acho que o jornalismo pode manter, e mesmo ampliar, suas missões. Vou citar três delas, vitais. Primeira, reportar os fatos e eventos correntes acuradamente. Isso é básico e vital, mas não é suficiente. Segunda missão, reportar analiticamente, julgando qual contexto dará aos leitores e espectadores o melhor quadro para se entender o que está ocorrendo. Terceira, falar não apenas sobre o que líderes políticos e econômicos estão fazendo, mas sobre o que fazem os vizinhos do leitor/espectador. Vivemos, caminhamos e andamos de carro entre pessoas com as quais nunca falamos. Como conhecê-las, imaginar como são suas vidas? O jornalismo pode nos ajudar nisso contando histórias sobre nossos vizinhos de diferentes raças, classes ou orientação sexual, de diferentes pontos de vista políticos ou religiosos, de gerações diferentes, de diferentes classes sociais. Essas três missões devem fazer parte de um jornalismo que se proponha a aperfeiçoar a democracia. Nas melhores organizações jornalísticas, já fazem.
Como o sr. vê a formação da chamada “opinião pública” nesses tempos de mídias sociais?
O finado sociólogo francês Pierre Bourdieu escreveu que “a opinião pública não existe”. Num sentido muito importante, isso é verdade – não existe “opinião pública”. Trata-se de uma construção desagregada e imperfeita em que entram profissionais de pesquisa e um aglomerado – em constante mutação e mudança de rumo – de impressões, piadas, filmes populares, posts virais, opiniões de gente influente junto ao público e abordagens públicas e privadas de assuntos do dia. Nem mesmo as pesquisas mais abalizadas, usando os melhores métodos e fazendo perguntas que não induzam o pesquisado a uma determinada resposta, perguntam coisas como “esse é um assunto no qual você alguma vez já pensou?”, ou “quanto do dia você gasta pensando em terrorismo internacional em vez de pensar em por que o ônibus está tão lento, como fazer o chefe reparar em você ou o que dizer a sua mulher sobre aquilo que você esqueceu de comprar no supermercado?”. Penso que opinião pública seja alguma coisa de ficção e alguma coisa de inspiração. Americanos, a julgar pelas pesquisas de opinião, geralmente relutam em ir para a guerra, mas mudam depressa de opinião se o presidente fala agressivamente contra outro país. Então, nossa opinião pública é pacifista ou militarista? Depende. E ela muda muito. Rapidamente. As pessoas frequentemente não estão muito convictas de suas opiniões sobre política, pelo menos em meu país. Assim, a opinião pública, como a avaliamos e discutimos, é tão mutável quanto o tempo e dá para se dizer que “n’existe pas” – como Bordieu. Mas é também uma aspiração. Democracias esperam que o público discuta matérias de preocupação comum e significância política e chegue a julgamentos razoáveis, individual e coletivamente, sobre essas matérias.
Quando a Wikipedia apareceu, muitos professores – o sr., inclusive – não a aceitaram como fonte de pesquisa séria. Hoje, como o sr. já disse publicamente, ela é vista como fonte legítima e até elogiada. O que mudou? Inovações, simplesmente, exigem algum tempo para nos adaptarmos a elas?
Leva tempo para as próprias inovações amadurecerem. A Wikipedia melhorou, como melhorou a comunidade que contribui regularmente com ela. E, sim, é preciso tempo para que muitas pessoas aceitem as novidades. Lembre-se de que há não muito tempo a maioria dos jornalistas achava os blogs ridículos. Depois, passaram a confiar neles. Hoje, eles mesmos se tornaram blogueiros.
PETER BURKE, professor emérito de História da Cultura da Universidade de Cambridge
Alguns analistas dizem que as transformações causadas na sociedade pela revolução digital são maiores do que as do tempo da introdução da escrita impressa por Gutenberg, que permitiu a distribuição de conteúdos em maiores escalas, quebrando barreiras geográficas. O sr. concorda?
Acho que a analogia entre a revolução da comunicação impressa e a revolução digital é muito esclarecedora, ainda que óbvia. No primeiro caso, podemos ver suas consequências estendendo-se ao longo dos séculos, enquanto no segundo, provavelmente estamos apenas no início do processo. A diferença mais óbvia entre as duas situações está na velocidade. No caso da imprensa, levou de 50 a 100 anos para que essas consequências se tornassem evidentes, porque, antes de 1500, os livros eram relativamente escassos e caros. Hoje, vivemos numa época de aceleração da história, principalmente na esfera tecnológica, de maneira que é difícil acompanhar o ritmo das mudanças. Por isso, foi difícil avaliar as consequências da revolução da informação impressa porque a mudança foi muito lenta, e por outro lado é difícil avaliar as consequências da revolução digital pela razão inversa, por causa da velocidade da mudança.
Uma história social da mídia analisa profundamente os ciclos de introdução e consolidação de cada nova mídia. Em que estágio desse novo ciclo estamos agora? Esse ciclo é maior do que os anteriores?
A minha impressão a respeito da mídia dos séculos 20 e 21 é que os ciclos estão se tornando mais curtos, e não mais longos, porquanto há um número maior de veículos com os quais a nova mídia interage (rádio, televisão, vídeo, internet...). Um livro que me impressionou a esse respeito é “The Master Switch” (“A Chave Mestra”), de Tim Wu (2010). Ele afirma que cada novo veículo começa ampliando a liberdade de comunicação, mas posteriormente acaba sendo absorvido por monopólios ou oligopólios. Wu não remonta a um período muito distante na história, e acho que a revolução da imprensa representa uma exceção à sua regra, entretanto o livro oferece material para reflexão sobre o futuro da Internet.
O sr. considera o aparecimento do conceito de propriedade intelectual como um marco histórico, que permitiu a criação do capitalismo informativo e possibilitou o comércio da informação. Hoje muitos tipos de informação são replicados e distribuídos gratuitamente ou quase. Como o sr. vê esse fato e quais podem ser as consequências a longo prazo?
De fato, acredito que o surgimento e a ampliação do conceito de propriedade intelectual, desde o século 15, é um fenômeno importante. Acho que é útil pensar em termos de processos, e acredito que nos últimos cinco séculos aproximadamente tem havido um conflito, uma queda de braço, entre dois processos opostos. Um deles é a privatização, que torna privado o conhecimento público, como nos casos de corporações que patenteiam medicamentos há muito tempo conhecidos na Índia ou entre os povos indígenas do Brasil. Por outro lado, tem havido um longo movimento de “publicização”, que torna público o conhecimento privado. No século 16, foram publicados livros nas línguas vernáculas para ajudar o povo a praticar a medicina caseira e a evitar pagar os médicos. O “vazamento” de segredos de Estado não é uma novidade na era de Assange e de Snowden. Já era comum no século 16, quando informes confidenciais destinados ao senado de Veneza circulavam em manuscritos ou mesmo impressos. A queda de braço continua, como nos lembram as tentativas da China de censurar a Internet.
Em Uma história social da mídia o sr. lembrou que na década de 50, com o surgimento da televisão, o rádio foi dado como morto em questão de poucos anos. O sr. pode comentar essa profecia?
Parece-me que a história da relação entre rádio e televisão exemplifica um fenômeno recorrente na história da cultura, ou seja, quando surge algo novo, frequentemente ele coexiste com o velho em vez de substituí-lo, num processo de divisão do trabalho. A sobrevivência da comunicação manuscrita na era da imprensa é um exemplo óbvio, enquanto hoje vemos também a coexistência da concorrência entre as versões online e a impressa do mesmo jornal. O rádio conseguiu preservar sua utilidade porque uma pessoa pode ouvi-lo enquanto olha outra coisa.
Tomando o leitor, cidadão, consumidor: nunca tivemos tanta informação disponível. Ao mesmo tempo, muitas distrações, muitas pessoas se queixam de dificuldade de se concentrar. Que tipo de sociedade da informação se está construindo? Qual será a nova hierarquia informativa?
As queixas referentes à chamada “sobrecarga de informações” remontam a séculos passados, embora a escala do problema tenha mudado nos últimos 25 anos. A prática da leitura está se modificando, com o escaneamento mais rápido e uma leitura menos lenta, embora alguns tipos de leitura rápida venham sendo praticados há séculos. Quanto à hierarquia, já vemos a ascensão dos programadores de computadores (talvez sem constituírem uma nova elite, mas como parte dela). O número de professores se tornará cada vez mais reduzido para o aprendizado online. Difícil será dizer se isso levará a um ganho ou a uma perda de status entre os que restarem.
A abundância informativa levou o “preço” da informação a quase zero, e efetivamente zero em muitos casos, gerando um problema para a sustentação do jornalismo. Como o sr. vê isto? A imprensa como a conhecemos hoje está mesmo ameaçada? Como vê o papel do jornalismo daqui para a frente? A imprensa conseguirá manter relevante o seu papel?
Eu gostaria de distinguir entre a “Imprensa” (no sentido de jornais e revistas impressos em papel) e “Jornalismo” (no sentido de uma indústria da informação que focaliza os acontecimentos correntes). É evidente que a Imprensa está se reduzindo, embora, ainda pensando em termos do meu modelo de coexistência cultural, isso não signifique que desaparecerá. Por outro lado, ainda precisamos do jornalismo: os repórteres enviados a outros países fornecem interpretações de acontecimentos bem como informações sobre os fatos em si, os repórteres investigativos que atuam em seu país, os colunistas que oferecem opiniões informadas sobre os acontecimentos, etc. Dada a probabilidade da ocorrência de acontecimentos dramáticos, quando não desastrosos, nos próximos anos, a demanda por Jornalismo provavelmente aumentará, mesmo que a demanda por material impresso se reduza.