O maior escritor do Brasil mora a poucas quadras da minha casa. Soa confortável dizer isso. Mas vamos reelaborar, por justiça prosaica, até. Que seja. Eu é que moro a poucas quadras do maior escritor do Brasil. Ponha-me, eu, no meu lugar. Soa ainda mais confortável.
Nós, paranaenses, nós, curitibanos, estamos mais do que acostumados a nos sentirmos periféricos, extra-jogo, descontáveis. Com tudo, reconheçamos, que possa haver também de bom nessa posição, nessa situação.
Se é verdade que temos que fazer muito mais barulho para garantir qualquer atenção, é fato também que contamos por vezes com um fator "pasmo" que nos concede certas benesses.
Tipo "nossa, eles sabem fazer (... preencha a contento...) lá naqueles matões!" Mas aí soa mornamente vingançoso dizer com todos os foneminhas que, afinal, o maior escritor do Brasil mora aqui, a poucas quadras da minha casa. Assim como soa muito agradável lembrar que ele chegou aonde chegou, atingiu o que atingiu, construiu a obra que construiu e tudo mais, sem jamais:
1. jogar o jogo do capiau e se bandear de mala, cuia, ideologia, temática e modelos pro centro que o pudesse atrair.
2. jogar o jogo do capiau mala e celebrar alguma pretensa diferença ideológica, temática ou cuial que pudesse haver cá na quinta comarca.
O ufanismo e o deslumbre foram duas aves que jamais se empoleiraram no muro coberto de lascas de vidro ("cacos" são coisas aleatórias; nosso hematófago não faz nada que não de caso pensado) da casa do nosso escritor.
O homem cantou o rio da aldeia dele, o nosso rio (literalmente, né), lembrando que ele era mais sujo e mais seu que qualquer outro e, assim, mais universal. Ele, que como todo homem de juízo é fã da frase de Terêncio que diz que a nós, humanos, nada do humano pode (deve) ser jamais estranho, olhou em volta, viu o caos, a decadência, viu o amor pequenininho e adoentado, viu tesão tão mirradinho ou mais parrudo, viu a dor, a violência, o pasmo, o encanto e mesquinhez de sermos eu, você e ele nós.
O maior escritor do Brasil solta um livro por ano. O maior escritor do Brasil tem uma obra de uma consistência e de um nível de qualidade que só se renovam e se só refinam.
Se Truman Capote tinha direito de cutucar Norman Mailer e Gore Vidal dizendo que eles podiam ser grandes, mas jamais haviam inventado um gênero, o que dizer de um escritor que inventou uma literatura? Que esperou décadas até que todos (todos?) entendessem que ele não estava escrevendo contos, não estava escrevendo livros? Mas que ele estava escrevendo a obra de Dalton Trevisan, seu maior personagem, seu maior livro.
Cada conto pode até ser peça de um livro. Mas, como ele, cada livro é peça da obra, que continua, cada vez mais ativa. É necessário lê-lo todo. E isso é novo. E isso é imenso. E, camaradas, ele mora aqui do lado.
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Mas, espera aí. Essa edição toda é em tributo ao seu Vampiro. Isso tudo será dito em todos os tons, por resenhistas muito mais sutis e finos que eu (e enquanto eu escrevia essa frase, soube que ele ganhou o prêmio Camões!) E o que tinham me pedido era um texto sobre essa "vizinhança", sobre conviver nas pertitudes de Dalton Trevisan.
E cá vou eu na dele mais uma vez, insistindo que o conto há de ser maior, e mais interessante, que o contista? (...)
Eu aqui de confábulos com o fabulante com que nunca nem fabulei direito, pra conspirar a favor da mania de escondidismo do autor?
Pois sabe que é mais ou menos bem isso?
Que, A, eu, se possível, não quero que uma pessoa a mais fique imaginando onde mora o Trevisan? (Ok, todo mundo meio que já sabe, mas mais abaixo fica meio claro porque eu acho importante esse teatro.)
Que, B, eu não tenho:
. Cacife pra posar de "chegado" (Troquei meia dúzia de palavras com o homem, nas esquinas da vida, sempre, eu, trêmulo e bobo, feito um... feito um... vá lá: feito um fã de Dalton Trevisan falando com Dalton Trevisan!)
. Interesse em posar de "chegado" (Eu sei que não foi isso que me pediram. Sei muito bem. Isso aqui sou eu brigando com as minhas neuras, noias minhas).
Que, três, eu acho a invisibilidade e a recolhidez de Trevisan uma coisa lindamente refrescante e refrescantemente linda.
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Na minha modesta opinião, o maior escritor americano vivo é Thomas Pynchon. Um "recluso" que vive no meio de Manhattan.
Na minha imodesta opinião, o maior escritor brasileiro mora a poucas quadras da minha casa. No meio de uma cidade grandota (Nesta cidade do Rio , / De dois milhões de habitantes, / Estou sozinho no quarto, /Estou sozinho na América,). E eles, os dois, conseguem isso. Obtém.
Porque a alta literatura, a literatura grande, ainda não é a televisão das celebridades. Porque a gente (eu, você e ele, que somos nós todos) ainda vive num mundo que SABE que o contista vale mais. Que respeita o desejo de um sujeito normal (certo, bisonhamente mais talentoso do que todo mundo, mas ainda assim, né?) ser ainda tratado e viver como um sujeito normal.
Eu tenho uma misturinha de vergonha e de orgulho dessas duas vezes em que parei o cavalheiro na rua e tremulei feito bandeira murcha pra dizer que era fã e pra perguntar uma coisa. Eu devia ter, sempre, deixado Trevisan ser Trevisan; devia ter, sempre, deixado Trevisan ser o Vampiro. É o que ele quer. E o meu trabalho é respeitar. Mas e o orgulho? Ai ai ai, coisa feia.
Mas tem orgulho. De saber, inclusive (por que te ufanas de teu contista, ó asno digitante!), que o maior escritor desse brasilzinho varonil mora aqui, a poucas quadras da minha casa, sobe a rua com saquinho de pão, e vez por outra almoça no mesmo restaurante, a poucas mesas distante de mim, me dando uma ligeira sensação de não morar nesta cidade, ou de morar numa cidade que subitamente deixou de ser a mesma; passou a ser o mundo.
CAETANO W. GALINDO É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ E TRADUZIU, ENTRE OUTROS LIVROS, ULYSSES, DE JAMES JOYCE (RECÉM,-LANÇADO PELA COMPANHIA DAS LETRAS)