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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Globoplay nos oferece 'Piedade'

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
O tubarão Aurélio (Matheus Nactergaele) às voltas com uma de suas presas, o dono de um cinema pornô vivido por um iluminado Cauã Reymond, em cena de "Piedade", de Cláudio Assis - Foto: República Pureza

RODRIGO FONSECA Tá rolando "Piedade" - o momento Fassbinder do cineasta pernambucano Cláudio Assis - na programação do Globoplay. Lá também é possível encontrar o filme com que o realizador tomou o Brasil de assalto: "Amarelo Manga" (2002). Neste momento, ele trabalha como diretor artístico da série "Chabadabada", para o Canal Brasil, que deve ser exibida até o fim do ano. Há na filmografia dele - elevada às alturas da excelência com "Baixio das Bestas", ganhador do Tiger Award de Roterdã, em 2007 - um canteiro onde nadam tubarões, animal mencionado várias vezes no longa que abre este post, lançado comercialmente em 2021, por conta dos atrasos da pandemia. Tubarões aparecem associados sempre à ideia de ganância e desajuste social. Sua fera maior é um executivo de uma petrolífera, que bebe uísque com o júbilo da ostentação. Aurélio, essa máquina de matar, é um devastador papel confiado a Matheus Nachtergaele, numa atuação das mais luminosas de sua carreira. É pelo litoral de Piedade que Aurélio ataca: o título do filme é o nome de uma utopia praiana. O roteiro dessa utopia é escrito por Anna Francisco, Dillner Gomes e Hilton Lacerda e dele saem pérolas como "E sexo fede desde quando? Sexo é cheiroso". Diálogos assim salpicam todo o filme, fazendo dele uma atração imperdível. No longa, essa tal praia com nome de sentimento é alvo do apetite da corporação para a qual Aurélio trabalha, sempre reportando suas andanças (e suas corrupções) à sua mãe, de quem disfarça sua orientação sexual. A tal big mama, vivida por Denise Weinberg, não esconde sua homofobia quando suspeita que homens sem camisa frequentam o quarto de seu filhinho. Mas apesar das carapuças de que se esquiva, Aurélio veste com prazer, no âmbito profissional, a máscara de predador. Sua presa preferida, com perfil de iguaria, é o exibidor Sandro, papel que faz Cauã Reymond passar, de uma vez por todas, aos altares do risco e da exuberância cênica. Se existe, em "Piedade", um lugar de heroísmo, de virtude, esse lugar pertence a Sandro, que gravita pelo liberalismo do amor. A morada dele é um cinema pornô, onde reside a autoralidade mais fina de Assis, como o grande realizador que é: sua obra, como uma vez definiu Nachtergaele, é sobre "como a gente trepa errado e sobre como a gente ama errado". E trepadas raras vezes ganharam luz mais linda do que a iluminação empregada pela fotografia de Marcelo Durst para desenhar o tônus lírico da querência dos corpos de Assis. Em geral, em seus filmes, relações sexuais são associadas ora à brutalidade, ora ao revanchismo (como o fio terra com uma escova de cabelo em "Amarelo Manga"), ora à escatologia (como a urina numa banheira onde um poeta come mulheres idosas em "Febre do Rato") ou ora uma expressão gráfica do sadismo. Em "Piedade", o sexo ferve a banho-maria: é intenso, mas tem a beleza da cumplicidade. O sexo une Aurélio e Sandro numa beleza coroada pela hipocrisia de um e a coragem de outro. Aurélio pode seguir sendo tubarão porque esconde seu querer, numa lógica submissa de homofobia e podridão moral. Sandro, por sua vez, assume quem é, tendo sido expulso de seu lar adotivo por isso. Mas não guarda mágoas. Ele é pura potência, pois deseja e obedece às suas vontades.

O cineasta pernambucano nos sets da série do Canal Brasil "Chabadabada" - Foto: Victor Jucá - Divulgação

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Existe, aí, no quadrante de prazeres e de cicatrizes de Sandro, uma parentela entre "Piedade" e o já citado Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), cineasta alemão, pilar essencial ao castelo do melodrama. Mas a parentela se dá não com o Fassbinder das obras consagradas (tipo "Lili Marlene" ou "O Casamento de Maria Braun"), mas sim o Fassbinder da bile, o de "Roleta Chinesa" ("Chinesisches Roulette", 1976) e o de "O Machão" ("Katzelmacher", 1969). É o melodrama do azedume, com cheiro de repolho e rosas mortas... ou o cheiro do adstringente que Sandro encomenda para diluir o aroma de ejaculação em seu cinema pornô. Aquela casa de tolerância avinagrada a fotogramas lembra o cineminha erótico retratada pelo diretor filipino Brillante Mendoza em "Serbis" (2008), mas com um sotaque de Brasil. Um Brasil de erosões e de abandono: nele, a veia melodramática do filme de Assis vem à tona quando Sandro (numa apoteótica gestualização de Cauã) descobre ter uma mãe biológica ainda localizável. Seu desafio é buscar seu paradeiro. Um paradeiro em que Fernanda Montenegro nos ilumina.

p.s.: Ricardo Darín vai ganhar os holofotes da "Sessão da Tarde" desta terça-feira, às 15h25, na Globo, dublado por Leonardo Camillo, num de seus maiores sucessos comerciais: a dramédia "A Odisseia dos Tontos" ("La Odisea de Los Giles", 2019). Raramente, uma produção de nuestros hermanos ganha espaço na TV aberta, mas Darín é Darín. Nesta produção pilotada por Sebastián Borensztein, em que o astro de 65 anos contracena com seu filho ator, Chino Darín, ele vive um ex-craque de futebol que, em 2001, no ano da falência financeira de sua pátria, reúne um grupo de vizinhos, em uma cidadezinha do interior, para abrir uma cooperativa. O problema é que o investimento de seus colegas num banco, nas mãos de um gerente corrupto, gera uma bancarrota coletiva, da qual ele há de se vingar. A produção vendeu cerca de 1,8 milhão de ingressos.

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