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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Moacir Chaves tá prosa com Machado

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Inventário semiótico das "Memóras Póstumas" machadianas, a peça "O Menino É Pai Do Homem" está em cartaz no Sesc Copacabana, com direção de Moacir Chaves - Foto: Dalton Valério - KBKM Produções

RODRIGO FONSECA Pra quem nunca se recuperou do "Fausto" montado por Moacir Chaves no Festival de Curitiba, há 20 anos, "O menino é pai do homem", em cartaz no Sesc Copacabana, pode causar efeito de encantamento singular. Causa deslumbre sua habilidade de fazer deslizar as palavras de Machado de Assis (1839-1908) dos livros para o palco, respeitando-as sem submissão, com invenção, num arrojo técnico de investigação umedecido por saliva e suor de seu afinadíssimo elenco. Não se trata de uma autópsia em corpo vivo para encontrar o tutano no esqueleto de substantivos, de verbos e poucos advérbios, mas, sim, de uma engenharia de paralelismos entre o que escreveu Machado e as ressonâncias de seus signos no tempo, numa semiótica vicejante. Signos não são espatifados quais jarras de mandarins, como o texto se refere em dada medida. Signos são preservados, numa paleontologia da ossada gramatical machadiana, a partir de um módulo de análise que se desenha no palco com agilidade, viço e engenhocas cênicas das mais diversas e plenas, como danças, leituras de autos e classificados de jornais do século XIX e de um doce despetalar da "Rosa" (1917), de Pixinguinha e Otávio de Souza. São dispositivos empregados como se fossem microscópios para ampliar as entrelinhas, as miudezas e os hipopótamos de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), que é "lido", relido e ruminado num espaço cênico multimídia. Espaço concebido pelo iluminador Paulo Cesar Medeiros e desenvolvido pelo cenógrafo e artista visual Sérgio Marimba, batizado de NAVE DE LUZ. É uma estrutura de 12m x 7m x 3m, contornada por coloridas luzes de led, subdividida por tecidos translúcidos que permitem a utilização de projeções e facilitam a proposta de geometrias capazes de surpreender Arquimedes. Uma lei de Machado ali se torna uma lei da Física: "Gosto dos números porque eles não comportam metáforas".

Chaves se calça nessa aritmética de 2 + 2 dá 4 (e ponto), apoiado numa trupe em estado de graça (Elisa Pinheiro, Anderson Oli, José Mauro Brant, Karen Coelho, Márcia Santos e Monica Biel), num rendimento equânime de pontuações. Não há necessidade de grifos, tampouco de rubricas. Cada fala, decalcada do livro, é embalada no rock e nas baladas do musicista Gustavo Corsi. As cabriolas que esse time nos dá, com elegância de carateca, no ninjútsu linguístico e gestual ensaiado por Moacir, derrubam chavões e impressões rasas. Por trás dele, cerca de dois séculos e meio (gravuras e desenhos de 1800; fragmentos de figuras icônicas dos 1900, como é o Dirty Harry de Clint Eastwood e o Imperador Sith de "Star Wars") correm como uma tapeçaria numa colagem virtual projetada nas instalações paralelas que confinam a montagem numa espécie de corredor polonês. Um corredor onde tomamos uma coça semiológica.

Reprodução do cartaz do espetáculo, que se encena como um "corredor polonês" de semiologia no espaço cênico concebido por concebido pelo iluminador Paulo Cesar Medeiros e desenvolvido pelo cenógrafo e artista visual Sérgio Marimba Foto: KBKM Empreendimentos Culturais e 7 Produções

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Nessa "soma de parcelas que não altera o produto" (ou seja, o alumbramento), Chaves se aproxima das estratégias usadas por Machado para devassar sua sociedade, seu tempo e, sobretudo, a ideia de "indivíduo". Ideia que se funda, na prosa, a partir da criação do romance (não como letra impressa em papel, mas, como tecnologia), nos 1700. Tal aproximação nos permite "ler" Machado e o dispositivo do "defunto autor", simbolizado por Brás Cubas, numa lógica bem próxima àquela do seminal ensaio "The Rise Of The Novel", de Ian Watt (1917-1999).

Segundo Watt: "Tanto as inovações filosóficas quanto as literárias devem ser encaradas como manifestações paralelas de uma mudança mais ampla - aquela vasta transformação da civilização ocidental desde o Renascimento, que substituiu a visão unificada de mundo da Idade Média por outra mito diferente, que nos apresenta essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de indivíduos particulares vivendo experiências particulares em épocas e lugares particulares". Machado é a consolidação dessa tal "mudança" histórica - de uma proximidade da/do leitora/leitor com o "eu" - na literatura lusófona. Não é uma descoberta de Brasil, e, sim, uma descoberta de "como ser" no Brasil. Assim é se lhe parece, e os seis personagens de "O menino é pai do homem" procuram seu autor, Machado, num regresso à fonte em que novos sentidos interpretativos de sua ideia de "alma" e de "país" se desnudam. Trata-se, assim, da consolidação de um teatro que não se resume a uma mimese, refinando uma série de métodos já empregados de modo autoral por Chaves - como o uso de "Rosa", já ouvida em seu supracitado (e devastador) mergulho em Goethe de 2003. Reiteração é renovação nesse caso.

Destaca-se, nesse processo, a maneira como o elenco dilata suas "máscaras", em expressões de olhar dignas de cinema mudo, chaplinianamente, como se vê sobretudo em Elisa Pinheiro (sempre brilhante, a julgar por seu desempenho no audiovisual, em "Tudo Bem No Natal Que Vem"), Karen Coelho (com seus olhares umedecidos de heroína de Miyazaki) e no vulcão Brant. Mas cada atriz e cada ator ali acrescenta seu toque pessoal, a se relevar a postura branda e filosofal de Márcia Santos (perfeita em cena) e uma aparente brandura na liquidez vocal de Monica Biel e de Anderson Oli, inteligentemente retóricos.

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Dani Vidal e Ney Madeira têm especial contribuição para a força visual de "O menino é o pai do homem", com figurinos de época que escudam o elenco como uma couraça de um passado que não carece de recuperações proustianas. Ele está aí no meio de nós, com seus grilhões.

Peça teatral de Moacir rumina os códigos de Machado Foto: divulgação da ABL

p.s.: Inspirado nos aclamados seriados de comédia "Friends" e "Sai de Baixo", o projeto "Agora vai!" chega ao teatro carioca com uma proposta inovadora: espetáculos diferentes a cada semana com o mesmo núcleo de personagens. Idealizado por Alina Lyra e Hellen Suque, com argumento e redação final de Hellen e direção de Alice Demier, a série fez uma temporada com lotação esgotada no Teatro Candido Mendes, e agora chega o Teatro das Artes, no Shopping da Gávea, dia 16 de julho, com sessões sempre aos domingos, às 20h. O primeiro episódio desta sitcom teatral apresenta os cinco personagens, vividos pelos atores Bia Guedes, Eduardo Melo, Hellen Suque, Hugo Germano e Zé Alessandro. O enredo acompanha quatro pessoas que nada têm em comum, em momentos diferentes de suas vidas, que se veem "obrigadas" a alugar quartos no apartamento de um herdeiro que está com os bens bloqueados, em Copacabana. Os cincos passam, então, a dividir os sonhos de vencer na vida e muitas confusões. Cada sessão contará com uma participação especial. Na estreia, o ator Paulo Mathias Jr. é o convidado da história.

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