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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'O Rio do Desejo' é um faroeste fluvial

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Anaíra (Sophie Charlotte) é a força que energiza o western de Sérgio Machado, baseado na prosa de Milton Hatoum Foto: Gullane/Divulgação

RODRIGO FONSECA Arauto da relativização dialética, baseado na certeza de que jamais se nada duas vezes nas águas de um mesmo rio, Heráclito bem que avisou: "Dura é a luta contra o desejo, que compra o que quer à custa da alma". Mas quem disse que os personagens inspirados no conto "O Adeus do Comandante", publicado por Milton Hatoum em "A Cidade Ilhada" (2006) se interesseram em ouvir o pré-socrático de Éfeso. A música que mais colou em seus tímpanos - mais alta do que uma versão carimbó de "Total Eclipse Of The Heart" - acabou sendo o chamado da carne e, com ele, os clamores da dúvida e da culpa. Foi assim na literatura e, agora, é assim na feroz versão cinematigráfica desse ensaio sobre a querência pras telas, dirigida por Sérgio Machado, em forma de western. Um western fluvial. Com estreia nesta quinta, depois de uma elogiada carreira em festivais da Europa, "O Rio do Desejo" periga ser o melhor faroeste que se fez no cinema brasileiro em muito anos. Ele só troca cavalos por barcos. Mas o ethos do filão - no que Anthony Mann, no que o John Ford dos anos 1950 e, em certa medida, no que Nicholas Ray, deram de melhor pra gente, ao trocar a vertente épica por uma dimensão de interiorização psicológica - está lá. O filme tem uma Sophie Charlotte de força cênica mastodôntica como sua Vienna - uma alusão à indelével personagem da atriz Joan Crawford em "Johnny Guitar" (1954). É um desempenho pra ficar no panteão das grandes atuações das estrelas do país, de Carmen Santos a Grace Passô. Sophie acha um jeito sóbrio, silencioso de unir meiguice e fúria em gestos de quietude que transbordam intensidade. Há um filme esnobado por universidades e por associações de críticos, seminal para quem foi dragado pelo Cinema nos anos 1990, com o qual "O Rio do Desejo" trava um diálogo frontal: "Lendas da Paixão" ("Legends of the Fall", 1994). Talvez pro período em que Sérgio Machado se deixava encantar por Eduardo Coutinho e pela estética da Nueva Onda Latino-Americana de Walter Salles, um meloso bangue-bangue Made In USA por Edward Zwick não tenha dito muito, em seu lançamento, quando só se falava na figura do jovem Brad Pitt. Mas é impossível não se traçar uma fina analogia entre Zwick e o novo longa do diretor de "Cidade Baixa" (2005). A conexão pelo tema da fraternidade, numa arena natural de exuberância e de esgarçamento do tempo do ponteiro, é imediata. Mas existe ainda uma parentela histórica na forma como os dois travam um pacto entre o melodrama e o western. De Hatoum, mais do que o enredo, Machado leva um coeficiente filosófico ao pensar a realidade amazônica. E os afetos. É impossível nadar no leito lírico que Hatoum vem lapidando desde "Relato de um Certo Oriente" (1989) sem evocar o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), teórico da efemeridade. s Segundo Bauman, "para ser feliz há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis: um é segurança e o outro é liberdade, pois você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles, uma vez que segurança sem liberdade é escravidão, e que a liberdade sem segurança é um completo caos". Os verbetes "liberdade" e "segurança" são traduzidos às avessas na obra literária homônima de Hatoum, ao ensejar figuras como Anaíra, uma onça em forma de gente, que oferece a Sophie selvageria para desenhar uma afirmação do empoderamento. Suas escolhas - de ser livre e de ser segura em suas decisões - fazem tremer as palafitas onde um mundo masculino hoje ameaçado de erosão se sustentavam. É o mesmo que se dava no Oeste de "Johnny Guitar" quando Crawford entrava em cena. Deslizando da prosa ao audiovisual, na oscilação de tempertaura propsta pela fotografia de Adrian Teijido (laureada no Festival de Tallinn, na Estônia) capaz de ir do suarento calor amazônico ao mais frio chiaroscuro, "O Rio do Desejo" é um inventário de colisões, que segue a linha do faroeste. Caminha pelo western em sua vertente de ação (pelo transporte fluvial de carga ilegal) e em sua vertente folhetinesca, de amores desmesurados. Sua trama é uma ciranda de quereres. Ao se apaixonar pela bela e misteriosa Anaíra (papel de Sophie), Dalberto (Daniel de Oliveira, com ares de Sterling Hayden) abandona seu trabalho na polícia e se torna comandante de um barco. Ao intervir numa briga familiar, no qual uma mulher (Gilda Nomacce, capaz de roubar pra si cada milésimo em que aparece), ele conhece a filha deste, a tal Anaíra, e se apaixona, optando por largar a farda. Com essa decisão dele, o casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos, às margens do Rio Negro. Essa vida flui bem até Dalberto ser obrigado a se arriscar em uma longa viagem rio acima, a fim de arrumar dinheiro, no transporte de cargas nem sempre legalizadas. Em meio a essa jornada, desejos proibidos vêm à tona. Na casa de Anaíra vivem dois cunhados. Um é Dalmo, papel de Rômulo Braga, numa atuação taciturna que só a sabedoria contrói). Ele é o irmão mais velho, que luta para controlar a atração que sente pela cunhada. Mora lá ainda o "bradpíttico" Armando, o caçula, vivido por um Gabriel Leone no apogeu da força cênica. Ele e Anaíra se aproximam caudalosamente. O que se monta é um tenso quadrilátero de quereres no qual cada vértice é mais afiado e mais contagiado de tétano do que o outro. No fervor da floresta, a certeza de que o amor é um objeto pontiagudo (como dizia o escritor Marçal Aquino) só aumenta. Mas as almas daquele purgatório com aparência de Éden já estão danadas pra sempre. É o mesmo ethos da Bahia de "Cidade Baixa", o que reforça o tom autoral de Machado, visto ainda na Salvador de seu "Quincas Berro D'Água" (2010). O ethos de que o perigo do mundo inflama as relações interdidatas pelas castrações da moral. O que Hatoum oferece de novo ao diretor é a percepção de que a moral pode até tentar domar o tempo, em sua ancestralidade, mas não consegue. Vence Anaíra. Vence a grande e sinuosa interpretação de Sophie Charlotte. Vence o rio, que como diz Heráclito, nunca é o mesmo, como o verbo "amar". Que filme gigante é "O Rio do Desejo".

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