PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Inteligência artificial e burrice

Podemos ver enormes quantidades de fatos, mas não compreender sua razão de ser

Foto do author Roberto DaMatta

Eu aprendi a escrever a lápis. Passar do lápis “à tinta” foi dramático. Escrever a lápis implicava em poder apagar usando a borracha – a qual, com um gesto, apagava os erros da escrita. A escrita à tinta desvendava a imensa divisão entre o universo transitório do desdizer-se hipócrita e populista, usando a borracha, e o permanente território da escrita que arquivava sabedoria e poder.

PUBLICIDADE

A tinta remetia ao que se pretendia ou presumia perene e interminável. Ao que deveria ser marcado em pedra, bronze e pergaminho. A reprodução fonográfica, fotográfica e cinematográfica culminou na digital e na portabilidade que, naqueles tempos jurássicos, era inimaginável. Ela engendrou essa era da simultaneidade dos celulares. Criou a capacidade de nos autoconhecermos e, com a ela, a vergonha ou o orgulho de nos vermos de fora para dentro, como um mentiroso e um charlatão. Essas trivialidades do mundo da baixa e da alta política.

*

No final do ginásio, comecei a usar uma máquina de escrever Olivetti de papai. Nesse patamar no qual permaneci por muito anos, escrevi (Deus sabe como) em inglês, numa máquina Hermes, minha tese de doutoramento e alguns dos meus livros.

Em 1986, quando aceitei uma cátedra na Universidade de Notre Dame chegou a gloriosa revolução do computador. Vivi o milagre de poder escrever e apagar instantaneamente. Milagre coadjuvado pelas inteligências dos dicionários e apps que respondem a dúvidas, lembram nomes e datas e produzem “sabedoria” onde só havia esquecimento e ignorância.

E nisso jaz a questão. Podemos ver enormes quantidades de fatos, mas não compreender sua razão de ser – o seu valor numa estrutura. O que os membros da minha tribo profissional chamam de compreensão cultural – essa tessitura que os objetos seus símbolos têm entre si...

Publicidade

A IA não estaria também predestinada à burrice das trevas de um permanente inesperado? Foto: Gerd Altmann/Pixabay/Banco de imagem

Em todo esse trajeto do lápis ao computador e dele e uma variada gama de recursos digitais e a Inteligência Artificial, hoje em foco, não me senti ameaçado nas minhas potências ou deficiências. Minhas inseguranças continuam as mesmas e minhas limitações surgem ainda mais nitidamente.

Baseado, pois, neste apanhado banal, eu me pergunto se a IA não estaria também predestinada à burrice das trevas de um permanente inesperado.

P.S.: Meu filho Renato, biólogo – professor e pesquisador da Universidade Darcy Ribeiro, em Campos dos Goytacazes, entrou no ChatGPT e descobriu o seguinte:

“De qualquer forma, posso afirmar com segurança que Roberto DaMatta faleceu em 7 de junho de 2021, aos 84 anos, em decorrência de complicações causadas por uma pneumonia.” A IA complementa que minha morte foi noticiada na grande mídia nacional, na BBC e no The New York Times...

Como dizer mais alguma coisa se morto estou?

Publicidade

Opinião por Roberto DaMatta

É antropólogo social, escritor e autor de 'Fila e Democracia'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.