PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Progresso, democracia e esperanças

Somos empolgados pela mudança, mas, como revelou Freud, ela precisa da coragem para dialogar com demônios. O progresso decreta respeito, senão ele se desmancha na primeira ressaca, como as nossas ciclovias.

Atualização:

Vivemos num mundo no qual as “páginas devem ser viradas”, embora a narrativa ancorada num progresso cumulativo ordene releituras. A leitura é o ideal, a releitura é uma necessidade.

PUBLICIDADE

Estamos testemunhando uma dramática releitura do Brasil como país. Não estamos relendo suas páginas como sociedade e cultura, como fazemos quando falamos de comidas, música ou quando discutimos bundas ou carnaval.

O Brasil está falido e na véspera de um desfecho que nos atinge como um todo, não há escolha. Enquanto a maioria torce por uma narrativa razoável, uma minoria, que opta pela negação e pela repressão, reitera que prefere apostar novamente no familiar “tanto pior, melhor”.

Estamos acostumados ao mote do “eu já vi esse filme”, indicativo de retorno de dramas reprimidos. Mas o imperativo de mudar é inadiável.

Um amigo gostaria de uma “limpeza geral”. Eu, humildemente, lembro que o drama é sempre maior que os atores. Num sistema que se diz “democrático-liberal” – embora muitos tomem isso como um insulto –, a peça sempre terá dois lados, embora um deles tenha como objetivo englobar temporariamente o outro.

Publicidade

O problema hoje não é substituir os jogadores; a questão é tirar de campo os atores indesejáveis a ponto da degradação do próprio jogo. Não se pode transformar o campo mais nobre e mais importante para o progresso de um país – a sua administração pública – num pântano. Substituir um capitão de time é algo delicadíssimo. É um ato doloroso, mas ele não significa liquidar o jogo. O ideal democrático continua desde que, como disse com propriedade o senador relator Antonio Anastasia, os adversários honrem o fato de que pertencem a partidos diferentes, mas balizem a disputa com sua lealdade à democracia.

Convenhamos que não se pode admitir a nomeação de quase 110 mil cargos comissionados, somente por critérios partidários, pois isso assassina o espírito das instituições. Todos, como enfatizou numa rara lição de liberalismo o citado senador, são membros de um partido e de um time que deseja vencer. Isso é o óbvio. Mas o que não é óbvio é descobrir que a vida política não pode ser reduzida somente a interesses e projetos partidários e pessoais.

Caso assim fosse, a desconfiança e a lealdade seriam os maiores obstáculos ao progresso democrático. Realizado com honra, o movimento parlamentar não pode ter como alvo – exceto por projeção construída pela má-fé – somente a vitória de um partido a qualquer preço.

Se um time de futebol é tão desleal a ponto de querer vencer todos os campeonatos e fazendo com que se pergunte, como o Galvão Bueno, o significativo: “Isso pode, Arnaldo?!” – o futebol acabaria por inanição. Ele deixaria de ser um jogo para ser teatro ou filme reprisado.

Por isso, a democracia é um regime alérgico ao radicalismo absoluto, à fé cega e, acima de tudo, à desonestidade e à conivência. Numa palavra, a uma “ética de condescendência”. Com a conhecida moralidade do tudo o que fazemos é certo e tudo o que vocês fazem é golpe. Sem o risco, sem a incerteza e sem o imprevisto, mas com um acordo básico no progresso e na igualdade de todos perante a lei como um valor deforma-se a democracia.

Publicidade

Se eu posso, com a minha insignificância como colunista, desejar algo ao governo Temer, desejo rigor e austeridade. Que ele tenha uma compostura jamais vista no Brasil. Que tenha a vontade de transformar “governantes” (ou donos) do estado em servidores da sociedade. Sugiro, e respeitosamente demando, a supressão de todas as figuras de privilégio e hierarquia que fazem o ator comer o cargo e o criminoso não ser punido.

É preciso terminar regalias como casa, criadagem, comida e aspones, que fabricam os “donos do poder”. É necessário impedir a nomeação por gosto e favores partidários ou sexuais.

Em suma, há que se adotar uma inédita e resoluta prática igualitária, sem a qual vamos continuar eternamente sendo os mentirosos engravatados de sempre.

Opinião por Roberto DaMatta
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.