Lembram-se de quando a média de leitura do brasileiro era de um livro por ano? Ainda é. Mas se subir para dois, o segundo, ao que tudo indica, não terá texto, apenas desenhos para colorir. Livreiros me contam que essa febre de livros para colorir - cujas vendas superam as dos livros com texto por esmagadora diferença - é veneta feminina, “coisa de mulherzinha”, para usar a expressão de um deles. As mulheres já compravam (e liam) mais livros que os homens; com esse macramê gráfico à sua disposição, agora compram (e colorem) mais livros que os marmanjos.
A bem dizer, esses volumes para colorir são como bonecas em forma de brochura, Barbies com lombadas, uma distração inequivocamente regressiva. Guardados numa estante formam o que podemos chamar de barblioteca. Suas infantilizadas (e sobretudo desocupadas) consumidoras alegam que encher de cores as monocromáticas ilustrações de Floresta Encantada, Jardim Secreto e outros álbuns da escocesa Johanna Basford (uma espécie de Romero Britto do nanquim) é um santo remédio para combater o estresse: distrai e relaxa, troca adrenalina por endorfina.
Se de fato terapêuticos, os livros para colorir não precisam de outra serventia e talvez devessem ser vendidos também em farmácias. Não têm efeitos colaterais, são inofensivos, como convém a todo e qualquer passatempo de criança.
Anódinos, seus desenhos só ganhariam importância se ousassem uma transgressão plástica qualquer ou alguma fatalidade os atingisse em cheio de uma hora para outra. Se, digamos, no meio da floresta encantada ou do jardim secreto um fanático muçulmano avistasse a figura de Maomé, Johanna Basford poderia até ser condenada à morte, a exemplo do que aconteceu com Molly Norris, desenhista de Seattle há quatro anos escondida para não ter o mesmo fim da redação da Charlie Hebdo, embora só tenha desenhado imagens não satíricas do Profeta numa xícara, num dedal e num jogo de dominó - o suficiente, contudo, para tornar-se “a pessoa mais procurada” por jihadistas ligados à Al-Qaeda.
O caso protagonizado por Pamela Geller e seu grupo de defesa da liberdade (não da expressão, mas da América), vítimas de um frustrado atentado na cidade texana de Garland, domingo passado, não serve de parâmetro. Geller, ultradireitista que se dedica a uma campanha sistemática visando a varrer os muçulmanos da América e do Ocidente, patrocinou em Garland uma competição de cartuns do profeta Maomé. Pelo que tem dito e feito em sua militância islamofóbica, poucos se animariam a proclamar pelas ruas “I am Pamela”. E embora ela tenha um pé no jornalismo, não consigo imaginá-la sequer cogitada para receber o prêmio Toni e James C. Goodale que o PEN American Center outorga todos os anos a quem arrisca a pele na defesa da liberdade de expressão.
Este ano, a honraria acabou destinada à revista satírica francesa Charlie Hebdo. A entrega do prêmio, numa solenidade no Museu de História Natural de Nova York, terça-feira passada, foi precedida de um arranca-rabo envolvendo quase todos os 3.300 membros da entidade. Há 93 anos que o PEN American Center se esforça para assegurar a livre circulação de ideias e informação em todos os quadrantes. Seu atual presidente, o escritor Andrew Solomon (autor de Longe da Árvore), justificou a escolha da polêmica revista francesa por seu exemplo de coragem, não pelo conteúdo de seus desenhos. “Colocamos a liberdade de expressão acima de qualquer conteúdo”, esclareceu Solomon o que, a meu ver, dispensava esclarecimentos.
O romancista australiano Peter Carey (Sua Face Ilegal) foi um dos primeiros a protestar publicamente contra o reconhecimento de uma publicação que, para a americana Rachel Kushner (Os Lança-chamas), “promove intolerância cultural”, usando estereótipos racistas contra os mais marginalizados membros da sociedade francesa. Outros dissidentes (Teju Cole, Deborah Eisenberg, Francine Prose) engrossaram a controvérsia, que culminou com um abaixo-assinado por mais de 200 membros do PEN e a defecção de seis autores escalados para dividir o cerimonial com Solomon.
À última hora, as cadeiras dos seis insurgentes foram ocupadas pelo jornalista da New Yorker George Packer, pela escritora iraniana Azar Nafisi (Lendo Lolita em Teerã), o franco-congolês Alain Mabanckou e mais três celebridades dos quadrinhos: Art Spiegelman, Neil Gaiman e Alison Bechdel. Matt Groening, criador dos Simpsons, queria participar da festa, mas sua agenda de trabalho não lhe permitiu.
Além de socorrer o cerimonial, Mabanckou soltou o verbo: “Charlie Hebdo sempre foi antirracista. Quanto a intolerância cultural, pergunto se existe intolerância maior do que aquela expressa pelas armas.” Spiegelman ficou sobremodo irritado quando alguns dos convivas deram as costas ao palco no momento em que os representantes da revista, Gerard Biard e Jean-Baptiste Thoret, receberam o prêmio. “Foi uma reação obscena”, comentou com uma jornalista que cobria o evento.
Salman Rushdie, que já manifestara seu apoio à premiação nas redes sociais, subiu o tom, acusando os dissidentes de “um bando de cagões”. Questionou o conceito de “comunidade oprimida” levantado por alguns deles. Para Rushdie, os fanáticos islamistas que trucidaram a redação de Charlie Hebdo pertencem a um grupo criminoso muito bem organizado e amparado por petrodólares, que usa a religião para aterrorizar, oprimir e silenciar a todos nós, muçulmanos e não muçulmanos. Só não citou GK. Chesterton (“Tolerância é a virtude de quem não acredita em nada”) porque outro já o fizera.