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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|E o Rio virou Cannes

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Pérgola do Copacabana Palace, numa ensolarada tarde de setembro de 1965. É meu turno de folga. E também de Paulo Perdigão, que comigo e outro crítico de cinema, Ronald Monteiro, divide a faina na Sala de Imprensa do festival. Nosso recreio já está quase nos descontos quando Ronald aparece, empunhando um papelucho: “Acabou de chegar a sinopse do filme italiano. Vocês não vão acreditar. Nelson Rodrigues perde. Esse filme ou é o mais ridículo do festival ou uma obra-prima”. 

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A sinopse, quase do tamanho de um telegrama, reduzia o tal filme a um indecoroso dramalhão: numa família em sérias dificuldades financeiras, a mãe, cega, é atirada num precípio por um dos quatro filhos, o mesmo que depois afoga o irmão caçula com distúrbios mentais numa banheira e afinal morre durante um ataque epiléptico, sem que a irmã, paralítica por culpa dele, possa socorrê-lo. 

Era só isso. Ainda havia uma relação incestuosa insinuada pelo diretor, que só fomos conhecer assistindo ao filme. E foi assim que fui, ou melhor, fomos apresentados ao provocante cinema de Marco Bellochio. Mais precisamente a “I Pugni in Tasca” (aqui: De Punhos Cerrados), que acabou sendo, para mim ao menos, o melhor, o mais ousado, filme daquela mostra. Sempre me lembro do espanto causado por sua sinopse quando ouço a ária Sempre Libera, da Traviata, que fecha numa oitava o espasmódico drama de Bellocchio, ou alguma referência é feita ao cineasta, o grande homenageado da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano.

A mostra que introduziu Bellocchio aos cinéfilos brasileiros foi o I Festival Internacional do Filme, ápice dos festejos pelo 4º Centenário da cidade do Rio de Janeiro, em que o jovem (25 anos) cineasta inscreveu seu longa de estreia por sugestão de Paulo César Saraceni, seu ex-colega no curso do Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma. São Paulo festejara o quarto centenário em 1954 com uma grande mostra de cinema, a primeira de repercussão mundial realizada no país; a do Rio, por coincidir com o último ano de Carlos Lacerda como governador do então Estado da Guanabara, beneficiou-se de uma verba milionária, o que possibilitou a presença de tantos figurões do cinema, em maior número da Europa, sobretudo de França e Itália. 

Por trás da organização, Moniz Vianna, crítico do jornal Correio da Manhã e diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna, bem relacionado com a elite da cinematografia mundial. Todos os seus pupilos foram recrutados para que o evento não ficasse muito longe da perfeição. Modéstia à parte, não ficou. Sua enorme repercussão, contudo, só assegurou a realização de mais uma edição, quatro anos depois, sem os recursos e as lantejoulas da primeira. 

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Por uma série de fatores (fim de temporada, o filé mignon da produção mundial reservada para Veneza etc), os filmes da parte competitiva ficaram muito aquém do glamour da festa, das estrelas que por suas sessões, coquetéis e badalos à beira da piscina do Copacabana Palace e nas areias defronte, e, acima de tudo, do nível de seu corpo de jurados: Fritz Lang, Vincente Minnelli, Valerio Zurlini (ainda estávamos sob o impacto de “Dois Destinos”), Edouard Molinaro (precursor da Nouvelle Vague), Leopoldo Torre Nilsson (o mais importante cineasta argentino da época), Gian Luigi Rondi (decano da crítica italiana, morto mês passado) e os brasileiros Nelson Pereira dos Santos e Adhemar Gonzaga. No júri dos curtas, a figura mais expressiva era o pensador francês Edgar Morin. 

Recém-premiado com o Leão de Ouro de Veneza, “Vagas Estrelas da Ursa Maior” inaugurou o festival, na noite de 15 de setembro, no Palácio, no centro da cidade. Nem os aficionados de Luchino Visconti, entre os quais me incluía, entusiasmaram-se com aquele etrusco psicodrama sobre incesto, cuja maior contribuição ao FIF foi trazer ao Rio a luminosa beleza de Claudia Cardinale, a mais destacada presença feminina da mostra, de resto, repleta de atrizes de primeira linha como Françoise Dorléac (generosos decotes), as divas italianas Rossana Podestà e Antonella Lualdi, a godardiana Macha Méril, a bergmaniana Gunnel Lindblom, a voluptuosa musa mexicana de Buñuel Sylvia Pinal. Além dos cineastas do júri e com filmes programados, vieram Roberto Rossellini, Jean Rouch e Roman Polanski. Antonioni cancelou viagem por motivos mal explicados. Godard, que acompanharia “Alphaville”, desistiu de vir; foi seu gesto de protesto contra a ditadura militar, disse-o com todas as letras num telegrama que depois desqualificou como apócrifo. Por coincidência, o telegrama e o desmentido ocorreram no meu turno na Sala de Imprensa. Quando dei o furo ao crítico Robert Benayoun, da revista Positif, histórica antagonista dos Cahiers du Cinéma, ouvi o que nenhum godardiano gostaria de ouvir: “É mais uma hipocrisia daquele fascista. Não duvido que ele tenha enviado o telegrama e depois o tenha desmentido.” De todo modo, “Alphaville” foi retirado da programação.

Nos meus turnos de folga e nas noites em que não me apetecia zanzar entre o Copacabana Palace e o cine Rian, o palácio do festival, também na avenida Atlântica, a Croisette carioca, com frequência caía em alguma festa de grã-fino. Na noite de 25 de setembro, um sábado, a festa foi nos salões do hotel. Por mais estranho que hoje pareça, quem abafou junto ao mulherio naquele baile foi o galãzinho Troy Donahue, e não Warren Beatty. Sábado memorável. Tivera à tarde uma entrevista exclusiva com Minnelli, até hoje inexplicavelmente inédita.  No meu balanço final, sem me ater aos títulos em competição, destaquei, além de “I Pugni in Tasca”, um Buñuel (“Simão do Deserto”), cuja sessão foi a mais tumultuada do festival; “Help!”, de Richard Lester, que levou a Gaivota de Ouro de melhor filme; “Mickey One” (de Arthur Penn); um John Ford menor, “Crepúsculo de uma Raça”; e, claro, a retrospectiva da obra completa de Buster Keaton, em cópias impecáveis. 

No que me concerne (ou concerniu) o everest da mostra não foi nenhum filme, nenhuma estrela, nem mesmo La Cardinale, mas um jantar en petit comité que José Lino Grünewald fez para Fritz Lang, em seu apartamento na Lagoa Rodrigo de Freitas. Havia fisgado o cineasta para uma entrevista em seu segundo dia na cidade, mas, ao contrário do tête-à-tête com Minnelli, afinal a publiquei, mas com 25 anos de atraso. Lang, que se encantou com a inteligência e a cultura de Zé Lino, era bom de copo e, a partir de não sei quantos graus no bafômetro, gostava de miar alto que nem gato no cio. 

A noitada fechou com o mestre alemão miando num modesto fusquinha, a caminho do Copacabana Palace, onde minha chauffeuse e eu o devolvemos à moça que o apajeava por conta do festival. Senti um certo complexo por caronear alguém como Lang em tão reles condução, não numa Mercedes; mas, que diabos, meu carro também era alemão.

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Opinião por Sérgio Augusto
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