Sfici, o vovô X-9 da Abin

Papéis deixados numa caixa contam história do embrião de nossa arapongagem, mais velho que a CIA

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Por Wilson Tosta
Atualização:

Foi como em um romance de espionagem da Guerra Fria - ou quase. Uma simples caixa de papéis, deixada em 1992 no Arquivo Nacional por um desconhecido, legou à história algumas das mais importantes fontes sobre os serviços de inteligência brasileiros pré-1964. A caixa continha documentos reservados, confidenciais e secretos do Serviço Federal de Informações e Contra-Informação, o Sfici, avô da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Oficialmente dinamizado pelo presidente Juscelino Kubitschek por decreto que acaba de completar 50 anos, o Sfici foi a tentativa mais estruturada do Estado brasileiro de ter um órgão "geral" no setor antes da ditadura. Batizado de X-9 - referência a espiões policiais - e digitalizado, o acervo conta em parte a pré-história da arapongagem verde-amarela, hoje em questão no Congresso e no Judiciário. "Há diferença de perspectiva em relação ao Sfici entre militares de baixa patente e a alta oficialidade", diz a historiadora e cientista política Priscila Antunes, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autora de SNI e Abin: uma Leitura dos Serviços Secretos Brasileiros ao Longo do Século 20. "Os altos oficiais diziam que o Sfici só recortava jornal. Mas os militares de escalões inferiores que serviram nele o descreviam como eficiente, com equipamentos de última geração e até uma máquina alemã." O Sfici nasceu, no papel, em 1946, criado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Mas só começou a ser montado em 1956, quando JK, sob pressão americana, permitiu que funcionários brasileiros fossem aos Estados Unidos aprender espionagem. Na volta dos arapongas, o órgão começou a ser concretizado. Fixou sede no Edifício Inúbia, em frente da Academia Brasileira de Letras (ABL). Em 1958, JK emitiu dois decretos, dando-lhe mais agilidade e autonomia. Parte das atividades do órgão gerou o acervo da coleção Informante do Regime Militar, sob o código BR AN, RIO X-9, no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. "A DPS registrou atividades de 60 agentes soviéticos, 35 dos quais operam nesta Capital, 12 no Nordeste, 6 no Sul, 4 em São Paulo, 2 no Estado do Rio e um na Bolívia", diz o documento Extremismos e Espionagem, do Departamento Federal de Segurança Pública, sem data, parte da coleção X-9. "O Sfici, entretanto, já identificou 112 agentes, 127 informantes e 86 pessoas em atividades correlatas, operando em dez Estados da Federação." Pelo Sfici, passou parte da futura cúpula da comunidade de informações da ditadura militar e até o presidente que a enterrou. O general João Figueiredo, como tenente-coronel, chefiou em 1961, no governo Jânio, a Subseção de Operações do órgão (SSOP), encarregada das operações de rua, campanas e grampos. O coronel Ednardo D?Ávila Mello - que, nos anos 70, foi demitido do comando do 2º Exército depois que o operário Manuel Fiel Filho morreu sob tortura no DOI-Codi/SP - foi, como coronel, chefe do Sfici. Prestava contas a outro futuro personagem do regime militar, o então coronel Golbery do Couto e Silva, chefe de gabinete do Conselho de Segurança Nacional, futuro criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) e ministro da Casa Civil de Figueiredo. "Em geral, as organizações clandestinas funcionam mais ou menos dentro do seguinte esquema: no escalão mais elevado há um chefe ou diretor que determina o objetivo", diz a apostila Princípios e Elementos Básicos de Organização para o Exercício de Atividades Clandestinas, parte de curso de instrução do Sfici. "As relações do chefe com os escalões mais baixos são mantidas por um sistema de comunicações clandestinas." Um desses cursos foi programado para o período de 14 de agosto a 15 de setembro de 1961 e teve nove "instruendos": um suboficial, sete sargentos e um cabo, segundo a apostila Informações - Curso para Encarregados de Casos e Agentes - Agosto de 1961. Os 19 dias de aula, nos quais o próprio Figueiredo foi instrutor, abordavam da estrutura do Sfici a assuntos como "natureza e característica da atividade clandestina", "segurança pessoal" e "cobertura pessoal, de grupo, organização de cobertura". Havia também aulas de "vigilância", "crítica da prática de comunicações", "entradas sub-reptícias - teoria e prática", "entrevista, interrogatório, provocação", "fotografia, tiro, gravadores", além de noções de radiotelegrafia". Uma apostila do Sfici de novembro de 1960, com 36 páginas, chamada Operações Técnicas e também parte do X-9, aborda um assunto ainda hoje atual: escutas. São instruções detalhadas, inclusive com diagramas, para instalação de microfones, amplificadores, gravadores e aparelhos de rádio, pelos agentes. Em uma época em que computadores ainda eram conhecidos como "cérebros eletrônicos", e o transistor, uma revolução, os desenhos e instruções abordam a instalação de aparelhos em salas freqüentadas pelos alvos da espionagem e em cômodos contínuos. Paredes, parapeitos e rodapés são apontados como possíveis nichos para recebê-los. Também são descritos outros métodos de escuta usados pelos arapongas, como os microfones remotos e o radiomicrofone. "Esse aparelho é do tamanho de um maço de cigarros, possuindo baterias que duram 24 horas", diz. "Destina-se a ser conduzido por uma pessoa que vai a uma reunião, comício, etc. e também pode ser escondido dentro de uma sala." Linhas telefônicas, claro, eram alvos prioritários do Sfici. A apostila aponta vários métodos para "sangrá-las". "Os escritórios muito grandes costumam ter uma mesa telefônica distribuidora (PBX), que controla as ligações da rede interna", diz o documento. Nesses casos devemos atacar a linha entre o aparelho e a mesa do PBX, porque o telefone visado entra na linha através do referido centro de controle." Mais adiante, outra lição de arapongagem: "Pode-se ativar um telefone de modo a utilizar seu microfone como meio de escuta, esteja ele no gancho ou não". A bisbilhotagem de hoje tem antecedentes. No papel, o Sfici nasceu antes da Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana. Foi fundado pelo presidente Eurico Gaspar Dutra por meio do decreto-lei 9.775-A, de 1946. Os EUA criariam o seu órgão de inteligência no ano seguinte. Em 1956, no governo JK, o coronel de infantaria Humberto de Souza Mello, o major de cavalaria Geraldo Knack, o delegado José Henriques Soares e um jovem capitão, Rubem Bayma Denys, foram para Washington aprender a montar um órgão do gênero. Os quatro, na volta, instalaram o Sfici, que já agia quando JK, em 1958, com os decretos 44.489-A, de 15 de setembro, e 45.040, de 6 de dezembro, remodelou o Conselho de Segurança Nacional e deu mais autonomia aos arapongas. "Não teve nada demais na criação do Sfici, no sentido de que os governos precisam ter um serviço de inteligência", diz a pesquisadora Maria Celina D?Araújo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "O que aconteceu depois, com a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI, órgão de inteligência da ditadura militar, fundado em 1964), foi uma reacomodação, mas em um contexto de excepcionalidade. O que era para ser um órgão moderno de assessoramento do presidente acabou sendo um instrumento de combate à oposição." Antes do Sfici, as experiências do País na área tinham sido iniciadas em 1927, com a criação do Conselho de Defesa Nacional, e se desenvolvido basicamente como órgãos voltados para a repressão política interna. Bayma Denys - que foi ministro do Gabinete Militar no governo José Sarney (1985-1990) - recusou-se a dar entrevista sobre o Sfici ao Estado. "É assunto vencido", encerrou, ao telefone. Em depoimento ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, em 1998, porém, deu detalhes sobre a montagem do Sfici, marcada pela Guerra Fria, na qual o Brasil se alinhava aos EUA contra a URSS. Segundo Priscila Antunes, Bayma Denys, no depoimento, contou que JK, sob pressão americana, concordou em 1956 em montar o Sfici, e os quatro funcionários foram para os EUA, para reuniões no Departamento de Estado, na CIA e no FBI. Ao voltarem, o Sfici começou a ser estruturado na 2ª Seção do Conselho de Segurança Nacional. Com a vitória de Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960, o coronel Golbery do Couto e Silva assumiu a chefia de gabinete do Conselho de Segurança Nacional, cargo que punha o Sfici sob suas ordens. O órgão já tivera sua sede transferida do Edifício Inúbia para um prédio na esquina de Presidente Vargas com Uruguaiana, em cima de uma loja que rendeu um apelido curioso aos arapongas: turma da Casa da Borracha. Depois da renúncia de Jânio, Golbery foi para a reserva e levou, para a conspiração do Ipes-Ibad que preparou o golpe, milhares de fichas do Sfici - uma futura base para os arquivos do SNI. Grampeou boa parte do governo João Goulart. O Sfici, segundo o jornalista Lucas Figueiredo escreveu em Ministério do Silêncio, monitorou os conspiradores e fez relatórios para o governo: Spy versus Spy. Depois da queda de Goulart, Golbery, no governo Castello Branco, estruturou o SNI, que absorveu o Sfici. Em 1990, o presidente Fernando Collor extinguiu o "serviço", que, de ministério militar, foi rebaixado a órgão de segundo escalão, o Departamento de Inteligência (DI) da Secretaria de Estudos Estratégicos, depois rebatizado de Subsecretaria de Inteligência (SSI). Era esse o nome da repartição quando um de seus agentes, Temilson de Resende, o Telmo, grampeou o BNDES, em 1998. Desprestigiada, a SSI foi transferida para a Secretaria-Geral da Presidência e depois Casa Militar, hoje Gabinete de Segurança Institucional. Em 1999, virou a Agência Brasileira de Inteligência.

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