Análise: Agora, repito a pergunta: 'Mãe, por que Fernando Faro fez isso?'

Jornalista sempre foi um homem doce, de fala calma e coração quente

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Por João Marcello Bôscoli
Atualização:

Conheci o Faro quando ainda era criança, um pouco antes dele dirigir o último show da Elis, Trem Azul. Sempre foi um homem doce, de fala calma e coração quente. Visitando sua casa pela primeira vez, lembro dele perguntar se eu queria uma Coca-Cola e, antes de responder, minha mãe interromper com a frase “Tá perguntando se macaco quer banana, Baixo?”. Nunca tinha ouvido essa expressão. Muito menos alguém chamar Elis de “baixinha” sem consequências. Faro, o Baixo, chamava a todos assim - baixo ou baixa e suas variações. Uma licença poética conquistada ao longo do seu convívio, experiência muito confortável, aliás. Na produção daquele projeto havia uma tensão no ar por causa da separação da Elis e do Cesar Mariano, seu marido e parceiro musical. Ele começou mas não participou da conclusão do espetáculo e, vez ou outra, testemunhei partes de discussões ou silêncios pesados. Hoje percebo ser eu, ainda criança, o transformador das discussões em pausas, hiatos constrangedores. Nesse período feito sobretudo de ensaios, encontrar o Faro era muito bom porque havia sempre uma piada, uma brincadeira libertadora. E quando ele trouxe a ideia de manequins com cabeças feitas de monitores de TV para o palco do Trem Azul, me conquistou definitivamente. Até os dias de hoje permanece uma ideia inovadora. Imagine em 1981.

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Outro golaço do Faro fora de campo - amava ver e jogar futebol -, foi o texto escrito por ele pra Elis recitar durante o show. Um síntese perturbadora, premonitória e emocionante da sua trajetória como artista e mulher. Faro era um gigante como diretor por captar e compreender a dimensão humana como poucos. Muito poucos. Durante o velório dela no palco do Teatro Bandeirantes, onde apresentou-se durante um ano e meio com outro show antológico, o Falso Brilhante, perguntei a ele: “Baixo, por que ela fez isso com a gente?”. Mais de duas décadas depois, ele confessou ter ficado desconcertado e até hoje a pergunta sem resposta ecoava na sua cabeça. Confessou também ter sido apaixonado por ela - único clichê que vi Faro cometer. A música brasileira teve nele um de seus melhores amigos. Seu currículo interminável é testemunha e prova disso. O programa Ensaio, no ar desde o início dos anos 70, constitui um dos maiores acervos musicais do nosso País, verdadeira reportagem da nossa era. Trabalhamos juntos durante quatro temporadas do programa Radiola na TV Cultura, fruto de sua inquietação e desejo de sempre abrir espaço ao novo, a quem estava chegando. Nele, descobri de maneira definitiva uma forma de focar apenas no fundamental. Tecnologia, orçamento e política eram ruídos neutralizados por sua sabedoria, despojamento e irreverência. Tinha certeza de que Faro sairia do hospital. Certeza. Agora, repito a pergunta: “Mãe, por que ele fez isso com a gente?”

* JOÃO MARCELLO BÔSCOLI É PRODUTOR E FILHO DE ELIS

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