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‘Todas Uma’, de Carla Bessa, mostra os fardos cotidianos carregados por uma mulher

Escritora dá voz a protagonistas de diversas classes sociais para contar dramas e injustiças

Por Ieda Lebensztayn
Atualização:

“Andar no meio da multidão, aos emboléus, com semelhante barriga! Só muita necessidade. Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca.” Tal cena do encontrão com uma mulher pobre e desamparada que, a um passo de ter filho, necessita trabalhar e atravessar a multidão arrastando outra criança, é memorável na composição de Angústia, de Graciliano Ramos. A associação de imagens anuncia a gravidez e o aborto de Marina, abandonada por Julião Tavares, rival que concentra os fatores sociais, psicológicos e morais do tormento de Luís da Silva ao fazer dele um assassino inútil.

Esse choque com a grávida pobre me veio à mente ao ler “Medeia”, um dos capítulos-contos de Todas Uma, novo livro de Carla Bessa, publicado pela Confraria do Vento, do Rio de Janeiro. Vencedora do prêmio Jabuti com Urubus, a escritora e tradutora recebeu também o prêmio Anna Maria Martins, promovido pela UBE, União Brasileira de Escritores, com Lívia e o Vão, versão anterior de No Domingo em que eu Morri, conto de abertura de Todas Uma.

A escritora Carla Bessa, autora de 'Urubus' e 'Lívia e o Vão', lança agora 'Todas Uma' Foto: Acervo da autora

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Se na referida cena de Angústia sobressai o desamparo social e afetivo da grávida, apresentada metonimicamente como uma barriga enorme e um olhar duro na multidão, “Medeia” traz também um encontro com uma mulher pobre na rua, mas, surpreendentemente, é a mendiga, a amamentar a filha, que oferece ajuda a uma passante. Medeia, a passante, está perdida: tendo vivido sempre conforme a vontade alheia, decide largar o marido e o filho, e, como sua xará da mitologia grega, cogita a morte da própria prole. Narradora em primeira pessoa, ela vê também metonimicamente pedaços da mendiga-mãe: os “cabelos desgrenhados” e a boca pintada de vermelho, a destoar da “cara suja”, constituem uma imagem que a persegue, com a “lembrança incômoda” do bebê que deixou no berço. Além da distância de classe, o afastamento em relação àquela “mulher imunda” ligada à criança decorre de uma dor difícil de Medeia: o filho lhe surgiu como um corpo estranho, e o aleitamento uma tortura, daí ter fugido de casa. Destaquem-se alguns ricos pormenores criados por Carla Bessa ao configurar a história de Medeia: escolheu Erínia como nome da mendiga, associando a ela “um sussurro vermelho” com que acusa a culpa de Medeia; reitera a imagem do bebê com a cabeça para fora do travesseiro e os bracinhos ao alto, como se rendido a um assalto.

Além de Medeia, são várias as figuras femininas a que Carla Bessa dedica os capítulos-contos do livro, acompanhando seus conflitos, feitos de desejos e insatisfações de ordem sexual, afetiva e existencial, numa sociedade patriarcal e dependente do olhar alheio. Em narrativas fluentes, entre sustos e perplexidades, o leitor depara com histórias de relações amorosas de Lívia, Lara, Rosa e Medeia, sejam com o marido ou o amante, permeadas de expectativas de prazer, de libertação e de realização pessoal, mas marcadas sobretudo por dores, medos e vazio. Sobressai o cotidiano entediante e resignado, os impasses quanto a ter filhos, traições, perdas familiares, insuficiências e a loucura.

Cena do espetáculo Medeia, de Consuelo de Castro e estrelado por Bete Coelho  Foto: Cia BR 116

A autora parece compor um labirinto com os conflitos dessas mulheres quanto aos relacionamentos e à maternidade, tendo início com o referido “No domingo em que eu morri”, da narradora Lívia. A formulação, embora metafórica, nos lembra o defunto-autor machadiano, que não teve filhos, não transmitiu o legado da nossa miséria, e, em seu delírio, assistiu ao desfile repetitivo de nascimentos e mortes ao longo das gerações, sob o comando da Natureza, mãe e inimiga. Nesse sentido, uma imagem se reitera em Todas Uma, justamente sintetizando a combinação ambígua do pronome indefinido “todas”, que engloba a multiplicidade, com o numeral “uma”, expressão de unidade, como também de singularidade: a imagem das fissuras na madeira do chão e das rachaduras nas paredes. As fissuras atravessam o tempo, sinalizando que, apesar das diferenças entre as mulheres, permanecem por gerações seus desejos, frustrações e impasses. Se os enredos trazem fatos subentendidos, fantasiosos ou de difícil compreensão, vale a epígrafe de Antonin Artaud: “Explicitar seria estragar a poesia da coisa”.

Porém, esse labirinto tecido entre as histórias de mulheres ganha nova luz no capítulo “Suely”, em forma de versos: nele, o leitor anda de ônibus com Suely, personagem recorrente, a empregada salvadora de todas as mulheres, que, até então à margem, ganha voz. ficamos também com a culpa social: sabemos o desfecho das histórias em meio a uma festa-rodízio de roupas entre grã-finas, de molde europeu e regada a vinho, em que a empregada tromba com uma mulher e derruba salgadinhos. “Suely pegou uma coxinha do chão e a enfiou na boca.” Só muita necessidade.

Ela denuncia a desigualdade, ao ver, da janela do ônibus, um casal à porta de um hotel de luxo e a mendiga sob o viaduto. E Erínia contracena com Suely, vendo-a como o coro das tragédias e assumindo-se uma das fúrias mitológicas, a acenar com a culpa das mulheres.

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CONFRARIA DO VENTO

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