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Trechos de 'Operação Massacre' e 'Nota de Rodapé'

Saem no Brasil obras do jornalista e escritor argentino Rodolfo Walsh, eliminado pela repressão em 1977

Por Rodolfo Walsh
Atualização:

Traduções patrocinadas pelo governo argentino trazem ao Brasil duas obras do jornalista Rodolfo Walsh, morto pela ditadura. Operação Massacre, clássico do New Journalism, e um volume de ficção, Essa Mulher e Outros Contos, que reúne contos como Nota de Rodapé, do qual reproduzimos um trecho.

 

Leia trecho de Operação Massacre, com tradução de Hugo Mader. Lançado pela Companhia das Letras, o livro chega às livrarias no dia 29 de setembro.

 

Operação Massacre

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A primeira notícia dos fuzilamentos clandestinos de junho de 1956 chegou a meus ouvidos de forma casual, no fim desse ano, num café de La Plata onde jogávamos xadrez, falávamos mais de Keres ou Nimzovitch do que de Aramburu e Rojas, e a única manobra militar que gozava de algum renome era o ataque à baioneta de Schlechter na abertura siciliana.

 

Nesse mesmo lugar, seis meses antes, fôramos surpreendidos certa meia-noite pelo tiroteio próximo com que se iniciou o assalto ao comando da 2a Divisão de Polícia e à Chefatura, quando da fracassada revolução de Valle. Recordo que saímos dali atropeladamente, os jogadores de xadrez, os jogadores de voltarete e os frequentadores ocasionais, para ver que festejo era aquele, e que, ao nos aproximarmos da praça San Martín, íamos ficando mais sérios e éramos cada vez menos numerosos, até que me vi sozinho quando atravessei a praça, e de novo acompanhado por um punhado de gente quando entrei na estação de ônibus, inclusive um negrito com uniforme de vigia que se entrincheirara atrás de uns pneus e dizia que, com ou sem revolução, não iam lhe tirar a arma, que era um notável Mauser de 1901.

 

Recordo que depois voltei a ficar sozinho, na rua 54 às escuras, onde três quadras mais adiante devia estar minha casa, onde queria chegar e finalmente cheguei duas horas mais tarde, em meio ao perfume das tílias que sempre me punha nervoso, aquela noite mais que as outras. Lembro-me da incoercível autonomia de minhas pernas, a preferência que demonstravam, a cada interseção de ruas, pela estação de ônibus, à qual retornaram por conta própria duas ou três vezes, mas cada vez de mais longe, até que não precisaram mais voltar porque tínhamos cruzado a linha de fogo e estávamos na minha casa. Minha casa era pior que o café e pior que a estação de ônibus, porque havia soldados nos terraços, na cozinha e nos quartos, mas sobretudo no banheiro, e desde então tomei aversão por casas situadas defronte de um quartel, comando ou delegacia de polícia.

 

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Também não me esqueço de que, encostado na persiana, ouvi um conscrito morrer na rua e aquele homem não disse: "Viva a pátria!", mas: "Não me deixem sozinho, filhos da puta!".

 

Depois, não quero me lembrar mais, nem da voz do locutor na madrugada anunciando que dezoito civis tinham sido fuzilados em Lanús, nem da onda de sangue que submergiu o país até a morte de Valle. Tenho demais para uma só noite. Valle não me interessa. Perón não me interessa, a revolução não me interessa. Posso voltar ao xadrez?

 

Posso. Ao xadrez e à literatura fantástica que leio, aos contos policiais que escrevo, ao romance "sério" que planejo para dentro de alguns anos e a outras coisas que faço para ganhar a vida e as quais chamo de jornalismo, embora não sejam jornalismo. A violência salpicou-me as paredes, há buracos de bala nas janelas, vi um carro metralhado e dentro dele um homem com os miolos à vista, mas foi somente o acaso que pôs isso diante de meus olhos. Poderia ter ocorrido a cem quilômetros, poderia ter ocorrido quando eu não estava.

 

Seis meses mais tarde, numa sufocante noite de verão, diante de um copo de cerveja, um homem me diz:

 

- Um fuzilado está vivo.

 

Não sei o que chegou a me atrair nessa história difusa, distante, eivada de improbabilidades. Não sei por que pedi para falar com aquele homem, por que estou falando com Juan Carlos Livraga.

 

Mas, depois sei. Olho esse rosto, o buraco na bochecha, o buraco maior na garganta, a boca estraçalhada e os olhos opacos, onde ficou pairado uma sombra de morte. Sinto-me insultado, como me senti, sem o saber, quando ouvi aquele grito lancinante atrás da persiana.

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Livraga conta para mim sua incrível história; creio nela no ato.

Assim nasceu aquela investigação, este livro [...]

 

 

Leia trecho da abertura de Nota de Rodapé, do livro Essa Mulher e Outros Contos, com tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates Goldoni. Lançamento da Editora 34.

 

Nota de Rodapé

In Memoriam Alfredo de León

† circa 1954

León sem dúvida queria que Otero viesse e o visse, morto e nu sob o lençol, e por isso escreveu o nome dele no envelope e dentro do envelope pôs a carta que talvez explique tudo. Otero veio e olha em silêncio o vulto do rosto coberto como uma tola charada, mas ainda não abre a carta porque quer imaginar a versão que o morto lhe daria se pudesse sentar-se diante dele, em sua sala, e conversar como tantas vezes conversaram.

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Um sossego de tristeza purifica o rosto do homem alto e grisalho que não quer ficar, não quer sair, não quer admitir que se sente traído. Mas é exatamente assim que ele se sente. Porque de súbito é como se não tivessem se conhecido, como se ele não tivesse feito nada por León, como se não tivesse sido, como os dois tantas vezes admitiram, uma espécie de pai, para não dizer um amigo. O fato é que ele está lá, e é ele, nenhum outro, quem diz:

- Quem diria,

e escuta a voz de dona Berta, que o olha com seus olhos azuis e enxutos num rosto largo sem sexo nem memória nem impaciência, murmurando que o delegado já está a caminho, e por que não abre a carta. Mas ele não a abre, embora imagine seu tom geral de lúgubre desculpa, sua primeira frase de adeus e de lamento.*

 

_________________________

*Lamento deixar inacabada a tradução que a

 

Acontece que com isso eles não ganham nem uma ínfima parte do que ambos ganhariam conversando, e de repente é assaltado pela obscura sensação de que tudo aponta contra ele próprio, de que a vida de León nos últimos tempos tendia a transformá-lo na testemunha perplexa de sua morte. Por quê, León?

Não é um prazer estar sentado ali, nesse quarto que ele não conhecia, junto à janela que filtra uma luz ultrajada e poeirenta sobre a mesa de trabalho onde reconhece o último romance de Ballard, o dicionário de Cuyás editado pela Appleton, meia folha manuscrita onde uma sílaba final treme e enlouquece até rebentar num borrão de tinta. Sem dúvida León pensou que com isso fazia o que devia, e por certo o homem grisalho e triste que o fita não vem recriminá-lo pelo trabalho interrompido nem pensar em quem poderá concluí-lo. Eu vim aqui, León, aceitar a ideia da sua morte inesperada e deixá-lo em paz com a minha consciência.

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De repente o outro se tornou misterioso para ele, assim como ele se tornou misterioso para o outro, e tem algo de irônico que ele ignore até a forma que León escolheu para se matar.

 

- Veneno - responde a velha, que continua sentada muito quieta em seu canto, envolta em suas lãs pretas e cinza.

 

_____________________

Casa me encomendou. O senhor vai encontrar o original sobre a mesa, junto com as 130 páginas já traduzidas.

 

E junta as mãos e reza em voz baixa, sem chorar nem sequer sofrer, a não ser desse modo geral e abstrato como tantas coisas a entristecem: a passagem do tempo, a umidade nas paredes, os buracos nos lençóis e os supérfluos hábitos que formam sua vida.

 

Há um retângulo de sol e de roupa nos varais do pátio, cercado por sacadas de chapas de metal onde aflora como uma piada um espanador balançando sozinho numa nuvem de pó, desfila um turbante sem dona e assoma um velho, que espia e cospe.

Otero vê tudo isso num instantâneo, mas é outra a imagem que ele quer formar em sua mente: o rosto elusivo, o caráter do homem que por mais de dez anos trabalhou para ele e para a Casa. Porque ninguém pode viver com os mortos, temos que matá-los dentro de nós, reduzi-los a uma imagem inócua, para sempre segura na neutra memória. Aciona-se uma mola, fecha-se uma cortina, e já lhes damos julgamento e sentença, e os cobrimos com uma suave camada de esquecimento e perdão.

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A velha parece embalar o espaço vazio que suas mãos medem.

 

- Ele nunca atrasava o aluguel,

 

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O resto não oferece dificuldades, e espero que a Casa encontre quem o faça. Infelizmente, tive de ignorar suas últimas advertências.

 

e a lembrança do morto emerge em parcos relatos: como comia mal e o barulho que fazia à noite escrevendo, e como depois adoeceu, ficou triste e arisco, e já não quis mais sair do quarto.

 

- Depois ficou louco.

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