A vida do escultor Francisco Stockinger (1919-2009) foi uma sucessão de peripécias repleta de acidentes e incidentes que, nas voltas do destino, o levaram a um dos mais agudos picos da expressão artística da segunda metade do século 20. Suas esculturas têm identidade própria, requintes de métier e aquela força de expressão simbólica que conjuga o drama da existência com uma atitude disposta a enfrentar e vencer esse drama. Além da escultura, ele praticou a xilogravura e até mesmo a caricatura. Como Beethoven, ficou surdo e não se incomodou com isso. Quando lhe perguntaram se a surdez o molestava respondeu: "Nem um pouco, sou um surdo convicto!".Muita gente, incluindo colecionadores, configura Stockinger como gaúcho porque Porto Alegre conta com muitas obras públicas suas e foi lá que ele viveu a maior parte de sua vida. No entanto, este artista, que tem uma escultura enorme na Praça da Sé, em São Paulo, e em todos os principais museus do Brasil, nasceu na Áustria, num vilarejo chamado Traun, em 1919. Com o pai, a mãe e a irmã, veio para o Brasil em 1923 com um passaporte "familiar", grupal, e foi para a mata bruta do Pontal do Paranapanema, em São Paulo, onde Franz Alexander, pai do também Franz Alexander (que é o nome de batismo de Stockinger), havia comprado um lote de terra. A família tentou se adaptar ao meio, mas não conseguiu. Em 1928, Ethel, a mãe, deixou o marido e a filha no sertão e foi com o filho para São Paulo. Ela conseguiu emprego no Mackenzie College onde Stockinger estudou até o começo de1937, tendo sido aluno de Anita Malfatti. Sua mãe, então, foi para o Rio, trabalhar no Hospital dos Estrangeiros e o jovem Franz Alexander foi junto. Queria ser piloto de avião, estudou meteorologia e tornou-se "previsor do tempo". Em 1941, obteve sua carteira de identidade no Serviço de Registro de Estrangeiros, com o aportuguesamento de seu nome para Francisco Alexandre Stockinger. Nesse tempo, seu pai era zelador do Retiro Umuarama, uma hospedaria do Instituto Mackenzie, em Campos do Jordão, onde costumava passar férias, para caçar borboletas, o Príncipe Paulo Gagárin, um dos maiores expoentes de nossa pintura paisagística que era, também, naturalista. Em 1946, o "previsor do tempo" revelou ao pintor Clóvis Graciano sua vontade de fazer escultura e este escreveu um bilhete de apresentação a Bruno Giorgi, que ministrava um curso no Hospital de Alienados do Rio de Janeiro. O próprio Stockinger conta como foi seu momento iniciático: "Bati na porta e quem me atendeu foi o Cláudio Correa e Castro (que veio a ser um ator famoso); entrei e tinha uma mulher nua; aí falei com o Bruno e ele me disse 'pega uma base e começa'; mas eu não sabia o que era uma base, não sabia nada". Por três anos, Stockinger frequentou o ateliê escola de Bruno Giorgi. Depois, foi para o segundo piso de um casarão na Praia de Botafogo que abrigava, no térreo, os ateliês de Darel Valença Lins, Di Cavalcanti e Ado Malagoli. Para o sustento, trabalhava como caricaturista no pasquim O Cangaceiro e no jornal Última Hora. Casou-se em 1949 com uma gaúcha. Participou do Salão Nacional de Belas Artes e do Salão de Arte Moderna, sendo em ambos premiado. Em 1954, mudou-se para Porto Alegre a convite de um jornal que nascia, A Hora, no qual atuou como diagramador e caricaturista, assinando suas charges como nos jornais do Rio: Xico. Perdeu o emprego e dedicou-se à gravura, catando tocos e tábuas velhas para talhar suas formas. Em 1958, conseguiu o certificado de naturalização brasileira. E foi contratado como desenhista do jornal Folha da Tarde. No ano seguinte, ocorreu sua primeira exposição individual: de xilogravuras na Biblioteca Municipal de Salvador, Bahia. Nos princípios de 1960, foi tomado pela otosclerose. Ficou completamente surdo, porém adquiriu notável habilidade de leitura dos lábios, o que lhe permitia dar cursos e conversar normalmente. A partir de então, dedicou-se somente à escultura. Ele percebeu que a escultura precisava desligar-se da arte da estatuária e começou a fundir artesanalmente suas peças no ateliê que montou no quintal de casa. Deformando a figura humana, amputando-lhe os braços, alongando ou dilatando corpos em atitudes de ataque ou defesa, criando guerreiras e guerreiros com lanças erguidas, figuras presas por correntes e figuras que rompem as correntes, Stockinger plasmou um universo de formas excêntricas que os críticos da época classificaram como "expressionista". Acontece que a barca do expressionismo é muito grande e carrega muitas formas de manifestação e muitos modos de ruptura com o naturalismo, seja ele clássico ou moderno. É verdade que os rótulos generalistas são úteis para compactar e simplificar o discurso crítico, mas não levam ao cerne nem à peculiaridade da extroversão artística. O que fez Stockinger a partir dessas fundições domésticas foi uma fusão da madeira com a solda de chapas de ferro texturizadas e, como que bordadas por sobras e dejetos da produção industrial numa amálgama de placas, pregos, porcas e parafusos que compõem as entranhas e as superfícies de seus guerreiros, suas amazonas, seus touros, apontando para nossa condição de seres da era industrial, uma era que se enfia entre o tronco das árvores e entre as pedras. O percurso existencial e as peripécias deste artista são narrados com minudências de tempo e lugar no livro Stockinger, Vida e Obra, escrito por José Francisco Alves, que será lançado hoje no Salão de Arte do clube A Hebraica, a partir das 19 horas. Nesse livro de 308 páginas, o leitor descobrirá que Stockinger também se inseriu nos anais da ciência. Depois de um enfarte, ele se dedicou a uma coleção de cactos e à busca de espécies raras dessa planta. Descobriu exemplares ainda não registrados no universo botânico; um deles é o notocactus stockingeri prestle, classificado como CR, ou seja, criticamente em perigo de extinção.
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