Xico Sá evoca Sísifo e Homero para contar a melancolia de um goleiro

Segundo romance do jornalista e escritor, ‘A Falta’ mostra a potência das perdas na vida de um atleta

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Foto do author Matheus Lopes Quirino
Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

“Não se morre de amor nos trópicos, Ela dizia, é tanta luminosidade, as cores estouram nas retinas, em fractais, o amor aqui no máximo leva à cegueira”, pensa o goleiro do Náutico, Yuri Cantagalo, rente à linha do equador. No quarto minuto do jogo, o protagonista já está farto. Sua sina, mais uma vez, faz-se presente: uma vida condenada à passividade do gol. Ele precisa defender o time das investidas todas do oponente e, mais, defender-se, às vezes de si mesmo.

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Protagonista do romance A Falta, do jornalista e escritor Xico Sá, Cantagalo, de quase quarenta anos, vive uma crise existencial ao longo de uma partida decisiva contra o Trem, um time fictício de segunda (ou terceira, quarta) divisão, em um estádio ambientado em uma mítica Macapá – perto do monte onde nasceu Macunaíma, referência captada por Cantagalo, um atleta leitor, conhecedor de Mário de Andrade a Nicanor Parra.

Nos anos futebolísticos, estar com quase quarenta anos na ativa é um milagre, reconhece o goleiro. Ele remói as dores do passado, dos tempos em que jogava na peneira de terra batida no subúrbio carioca à vida delirante em solo europeu, quando de consagrou um astro no gol.

O escritor e jornalista Xico Sá no Teatro Paulo Autran, do Sesc Pinheiros  Foto: Iara Morselli/Estadão

Da temporada em que esteve na Espanha, Cantagalo conheceu Sevilhana, uma espanhola caliente que levou o atleta ao tablado do flamenco. Ao longo da partida, ele remexe no baú dos afetos e traz à baila toda a história desse amor cigano, sem frescuras e com intensidade. Xico Sá traz ao seu segundo romance um universo que bem entende: o imaginário popular das relações, que dá o tom na trilogia Modos de Macho e Modinhas de Fêmea, com o livro homônimo publicado há quase 20 anos pela primeira vez.

O abandono da mulher de sua vida, uma paternidade perdida, os vícios e trevas dos gramados aos cassinos, passando pelos cabarés e vestiários, depois de décadas, transformam-se em fantasmas que cercam, a todo momento, a mente do goleiro. “O dia seguinte será um jogo em branco. O vazio extraordinário.”, reflete Cantagalo. Ele persiste na posição que o alçou à fama, se mantém atento na partida, sob os versos de Nelson Cavaquinho, verdadeiro remédio para a angústia latente do homem que vê seus dias correrem ao encontro do desconhecido (em sua mochila, estão barbitúricos em dose cavalar).

O compositor Nelson Cavaquinho, um dos letristas cultuados da MPB Foto: Acervo Estadão

“Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor/Hoje pra você eu sou espinho/Espinho não machuca flor”, toca ao pé d’ouvido do atleta, entre os pensamentos imperfeitos e a pressão que a torcida lhe provoca. Cantagalo, um equilibrista entre a performance e a emoção, reflete: “Infelizmente eu era uma tardia atração no terceiro mundo. Um artista cuja arte datou no tempo”. Ainda é o primeiro tempo.

O minuto a minuto da partida é narrado pela ruminação de Yuri Cantagalo, que conta com os comentários de Tirésias Cavalcanti, um místico narrador “que enxerga além da ladainha cotidiana”. Xico Sá cria a figura do ouvinte de carteirinha, aquele que acompanha as partidas de futebol no radinho de pilha. É Walter Wanderley, o Dáblio Dáblio, outro personagem do imaginário do goleiro. Ambos são uma espécie de força antiga que traz ânimo ao personagem, como se os fragmentos da época de glória se materializassem em lembranças por esses personagens excêntricos, contudo, icônicos aos amantes de futebol.

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“O melhor de jogar em estádios pequenos é ouvir os narradores. Tremendos ficcionistas. Tudo vira um épico. Mal sabe que este Ulisses paranoico é que chora e tece um manto para a Penélope que ganhou os mares”, escreve o autor, citando a saga do herói da Odisseia de Homero, um clássico que reverbera na literatura, entre tantos outros escritores que contam o périplo da vida de um homem (herói), como Xico Sá.

O ator Gregorio Duvivier na peça de teatro 'Sisifo'  Foto: Elisa Mendes

As referências literárias, característica da prosa do autor, mostram a dimensão da condenação do goleiro. Ele cita o mito grego de Sísifo, quando conta o sonho que teve com o suposto pai, um superastro russo, “Seria possível um Sísifo feliz, mesmo sob castigo e repetição permanentes, como se enxugasse gelo?”.

A Falta, essa sentença que recebe múltiplos significados no romance, é o gatilho que alimenta todas as neuroses do protagonista. O homem comum em busca da parte que lhe falta. O vazio pulsando. O amor perdido, no caso, escapando entre seus dedos. Os mesmos dedos que podem barrar a derrota, vaticinar o destino do jogo, da vida. Na linha de defesa, o goleiro observa, vulnerável, e prova que, mesmo com a cabeça a mil, a derrota espreita todos os homens. Viver é ter o placar anunciado, como eterno zero a zero.

A FALTA

XICO SÁ

TUSQUETS

160 PÁGINAS

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